sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A espera.

.
Com gestos miúdos e contidos fechou as gavetas uma por uma. Jogou as chaves na bolsa de couro aberta em cima da mesa.
Quinze minutos faltavam ainda para cinco e meia. Mesmo assim resoluta se encaminhou para o elevador. Na recepção desejou um bom fim de semana à recepcionista.
Ao sair para a rua sentiu o impacto do vento cortando seu rosto moreno. Enfiou as mãos no grosso casaco como se tal gesto fosse protegê-la do frio. Época boa para caminhar costumava dizer.
Parou no pipoqueiro comprou seu saquinho habitual. No semáforo atravessou a rua. Um quarteirão depois, à esquerda, desceu o declive pela trilha que cortava o canteiro onde a placa fincada bem no meio do verde dizia em letras quase apagadas: não pise na grama, deixando a marca dos pés sobre os muitos pés de transeuntes apressados.
O ponto do ônibus como sempre era um imenso formigueiro. Parou afastada da massa aglomerada à beira da calçada olhou o relógio. Dali a pouco o noivo viria apanhá-la.
Como sua vida podia ser de uma futilidade de nada lhe acontecer a não ser o corriqueiro foi o que perguntou a si mesma observando a afobação das pessoas em querer tomar a condução, via uma ânsia de se ter alguma coisa para se fazer, de se ter um compromisso que provavelmente, preencheria a vida de cada um.
Indignava-se com aquela afobação. Um empurra sem fim que só demonstrava ignorância bestial contra o semelhante. Todos de uma maneira ou de outra chagariam em casa, por que precisavam ir todos ao mesmo tempo?
Mudou o pé de apoio. Cruzou os braços. Do peito saiu um suspiro curto, cansado. Droga de vida! Por que ele demorava?
Nisso sem saber, começou a sentir um pequeno formigamento do lado esquerdo ao mesmo tempo a temperatura do corpo subiu. Não agüentava o calor. Apesar do frio tirou o casaco. Pôs se a andar de um lado para o outro na esperança de que a sensação esquisita desaparecesse.
Angustiada perdia o controle dos movimentos. Horrorizada suas mãos subiam e desciam acariciando seu corpo. Dos lábios saiam gemidos lascivos. Tinha noção do que se passava, não conseguia deter as mãos, nem a voz.
Nisso a senhora ao lado que a olhava de soslaio, se afastou quando resolveu tirar a blusa ficando de sutiã. Nessa altura todos olhavam para ela que se contorcia desesperada.
Fizeram um círculo a sua volta. Assobiavam e gritavam palavras obscenas. Um coro de voz se sobrepôs num uníssono em tira, tira, tira. Obedecendo ficou só de calcinha. A senhora que havia se afastado gritou: Chamem um guarda! A cena parecia saído de um filme B.
O guarda nos seus noventa quilos apareceu empurrando e pedindo licença. Seus olhos se arregalaram ao ver ela se acariciando como se estivesse num palco fazendo strip-tease. Estava diante de uma situação inusitada. Estupefato não sabia o que fazer. Precisava agir. Deu dois passos à frente e esticou a mão. A ponta dos dedos tocou a pele morena quando se ouviu um buzinar insistente fazendo com que ela desse um pulo de susto.
O noivo a esperava com a porta do carro aberta.
Pastorelli

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Gestação


Angélica T. Almstadter

Ando gestando poesias,
Me despindo de palavras,
Coisas miúdas que já não me cabem,
Certezas que me sabem.
Estou parindo versos e prosas,
Regados com minhas primícias;
Quero cultivar jardins de lavras,
Gerados no ventre das minhas carícias.


Estou prenhe de amor,
Não para parir pessoas,
Nem fetos, objetos ou afetos;
Estou em estado de graça,
Acariciando a alma em flor,
Mimando-me com cânticos e loas,
Enfeitando meus pés e meu trajetos.


Estou grávida de um vulcão,
Desde a última chuva, da última lua.
Em berço alvo e discreto,
Vai nascer um furacão secreto,
Pra romper a cara no dia,
Varrer do meu corpo a agonia,
Pacificar minha fisionomia.
Estou gerando o meu mundo,
Nas fissuras do meu peito.


Vou parir sem dor,
Num rasgo lento e profundo,
O cataclisma mais que perfeito,
O abstrato fruto de silêncios,
De aromas; o meu amor,
Atravessado por milênios

sábado, 4 de setembro de 2010

Um pouco antes...


Um pouco antes da primavera

Rosa Pena



Nas semanas que antecedem a primavera começo a criar novas expectativas. Vivo movida por elas. Em cada estação tenho uma. Nesse inverno tive a sensação do pré-catártico, do pré-apocalíptico e não é que os ventos tentaram me derrubar?


Perder amigos, operar e ser obrigada a um descanso obrigatório (descansar do que se ama fazer!?) é trágico demais para o contorno do meu sorriso.

Devo confessar que tive um verão de mediano a fraco, mas um outono que merece o Oscar. O casamento de minha filha (lindo de viver) e uma viagem maravilhosa (fico bem sebosa pra dizer que rever a Europa é sempre show).

Se eu acreditasse em olho gordo mandava um monte de gente colocar balão gástrico nas retinas, pois a surra que a bendita vida aprontou para mim depois desses momentos mágicos do maravilhoso mundo da Rosa, parece coisa feita! Se foi macumba, foi realizada pelos mesmos que trabalharam contra o Romário. Quem merece é o senado que ganha sem bater um bolão. Quem merece é o Lula que me fez acreditar que o Bush, Arafat e outros mais eram najas criadas. São minhocas imbecis perto dele.

Volto para as vésperas da primavera onde as flores se preparam para mais um prêt-à-porter. O fundo musical do desfile é o piano do Tom Jobim. Ele é um gênio eterno, sem virtuose no sentido de técnica programada, ele foi e sempre será virtuoso no improviso, no pensamento que vai para as mãos, nas idéias, nos silêncios sugeridos, na rouquidão da voz, no jeito tesão Leblon que já nasceu com ele, apesar dele ter nascido na Tijuca. É um estado de espírito. Costumo dizer que o homem que sabe o que é bom anda desde neném com camiseta hering branca. Ai Jesus...me abana!

O que espero dessa primavera ?

Os beijos na boca que só dei em sonhos, à volta da paz no meu sorriso, o sono sem tarja de cor alguma e porque sou má, desejo também para quem torce contra a felicidade em geral, um sobrepeso de vinte quilos. Vão tomar chás verdes, brancos, amarelos, cor da bandeira do Brasil. Minha praga costuma ser boa de pegar. Mas não espero só isso depois desse inverno com "f". Espero mais, bem mais. Anseio pelo sol sem intenção de câncer e o mar regido por Tom.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

esfriando...

angélica t. almstadter


borrei a pintura enquanto esperava
na bandeja meus olhos claros
se escondiam da luz teimosa
uma lágrima suave bailava
e eu tecia esses alinhavos


a conversa se espalhava cheirosa
dentro das xícaras fumegantes
entra e sai de passos leves
sorriam em abraços aconchegantes
pela maquiagem escorrida
não era adeus, apenas acenos breves


entre uma e outra fala aborrecida
altas doses de adoçante
e o que era vaga costumeira
foi ficando distante
derramou-se todo a calda
no confuso tabuleiro
nunca mais voltou a calma
aos meus verdes timoneiros...

8/11

.

deixo-me
cair no sentimento
de cada verso elaborado
prosa, rima ou canto diverso
que me faça estar de você
cada dia mais perto

deixo-me
fluir o saudosismo
nas intensas palavras
como única recompensa
lágrimas a queimar
a rígida pele de oferenda

deixo-me
rolar em devaneios
sentir teus túrgidos seios
roçar minha língua de desejos
num prolongado beijo

deixo-me
ficar sonâmbulo noctívago
a presenciar doloroso estrago
do passado silente
a sufocar-me quietamente

Pastorelli