domingo, 19 de dezembro de 2010

Feliz Natal

O Natal é vermelho

Rosa Pena




A mãe já estava entrando na terceira idade e começava a sentir aquela pontinha de desânimo, aquele tanto faz como tanto fez, entre eles... armar a árvore de Natal, fazer ceia.


E pensar que ela sempre fez uma questão danada de muitos enfeites, do presépio, da guirlanda na porta, de um peru maravilhoso. Foram festas lindas, fantásticas. E pensar, e pensar, e pensar! Pronto: Agora nada de pensar, muito menos navegar na nostalgia. Saudade vá procurar outro coração, pois esse não lhe pertence. Replay de Natal fica por conta do Rei RC que só varia a roupa de branco para azul ou de azul para branco. Inovar é a palavra de ordem.

O marido sempre acompanhou suas resoluções. Dos sete filhos agora só dois moravam com eles naquela casa linda e imensa. Empregados nessa época folgam. O trabalho e o silêncio dobram.

O temporão insistiu tanto na confecção da árvore que ela acabou por enfeitar displicentemente a antiga num cantinho qualquer da casa.

Como cada um dos outros filhos passaria num lugar diferente, sugeriu impondo aos quatro que fossem cear num quiosque em frente à tão badalada árvore da Lagoa. Dois toparam, mas levou um susto quando o caçulinha disse:

—Cear fora de casa? Logo na data em que as árvores armadas em casa ficam mais bonitas... O menino não nasce mais?

Foi ao supermercado comprou um tender cheia de love e muitas cerejas. O Natal é pintado de vermelho, é vida, não é luto.


Mas o Rei vai estar de azul e cheio de flores. São tantas emoções que a gente vive por mais que tenhamos quase certeza que elas se esgotaram com o tempo.



 
*livro: TARJA BRANCA (2010)

sábado, 18 de dezembro de 2010

O papagaio.



O cam­pinho como era cha­mado o ter­reno baldio que fi­cava atrás da casa àquela hora estava va­zio. O que lhe proporcionou uma alegria safada.

Queria testar primei­ra­mente antes de mostrar aos amigos o papagaio que fizera com ajuda do pai na noite anterior.

Olhando para os lados viu que o dia estava exce­lente. O vento so­prava docemente o que prometia boa diversão. Paci­ente esticou a li­nha e sem muita dificul­dade conseguiu colocar o papa­gaio no ar.

A linha quase totalmente esti­rada produzia na sua mão vi­brações pequena que ao seu comando o papagaio subia, descia e com pequenos toques na linha fazia com que ele embi­casse ora para a esquerda, ora para a direita.

Já previa a estupefação dos amigos, as ex­clamações de admiração. Veriam que agora eles tinham um compe­tidor à altura, sor­riu satisfeito.

Nisso ao dar um puxão um pouco mais violento, a linha perdeu a força. O pipa estava caindo. Largou a lata de li­nha e saiu cor­rendo. O campinho não era grande, mas o vento para desespero do ga­roto arrastou o pipa para o outro lado da rua.

Estava quase perto do pipa caído no asfalto quando viu surgir o carro vindo pelo lado es­querdo. Aflito ele acelerou as pernas e gritando e gesticu­lando os bra­ços procurou chamar a atenção do mo­torista.

Porém o veí­culo au­mentou a velocidade não dando oportunidade para que ele che­gasse a tempo para salvar o papagaio. Com os olhos fixos cheios de lá­grimas pegou os destroços do chão e com passos lentos en­trou em casa.

Pastorelli

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Turbilhão

 Foto j.almstadter

Angélica T. Almstadter
 

Sem direção e nenhum freio
eles entram e saem
silenciosos algumas vezes
ou rasgando emoções
arrebentando as comportas
que me banham soluçantes
 

Liberam alegrias
lembranças doces ou doídas
estimulando
inspirando
deprimindo
 

Vorazes como a fome
devoram as palavras
que regurgitam
incessantemente
... sobre o alvo papel
vai se livrando delas
uma a uma num ritual
emocionalmente caótico

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O menino e o tio.


Feito intrépido Rocicler enfrentando a poeirenta estrada, o velho caminhão apelidado carinhosa­mente de Mazzarope resfolegava em mais uma viagem transportando o pessoal.

Em pé na carroceria junto com os outros, ele se equilibrava numa disfar­çada brincadeira para ver quem permanece­ria mais tempo em pé. Brincadeira estúpida, não gostava. Preferia ficar deitado no assoalho de tá­buas brancas que exalava cheiro de cevada con­templando o céu azul, mas como estavam em mais de vinte pes­soas era obrigado a participar dessa brincadeira boba.

Seus olhos castanhos esverdeados claro lembravam os olhos da vó dardeja­vam um inquieto brilho de raiva, duro, ma­goado, de quem es­pera uma oportunidade, e quando ela chegasse não iria perdê-la, ah! não, não iria perdê-la por nada, seria seu passaporte para a vida futura.

A humilhação quei­mava na mente como ferro em brasa. Os ouvidos martelavam as gozações, as risadas ao verem ele sem calça, nu, pelado na frente de todos. O tio, irmão mais velho da sua mãe, segurando sua calça era quem mais go­zava da sua cara. Como odiara o tio, odiara aquele momento. Seus olhos fuzilaram o tio, seus dentes rangeram um contra o outro num ódio imenso. Nada pudera fa­zer, a não ser se esconder. Num safanão arrancara a calça da mão do tio e fugira. Ah! Ele não perdia por esperar.

Che­gavam à cidade.

Para­riam na casa do tio como faziam toda vez que havia matança de porcos, para a distribuição do quinhão perten­centes a cada uma das fa­mílias. Era nesse momento que ele iria ter a chance. Era só ficar de olho aberto, vigi­ando.

En­quanto o velho Mazzarope atravessava a rodovia en­trando na cidade, revia os acontecimentos que gostaria nunca ter acontecido. Descendo do ca­mi­nhão no pátio da fazenda, a pri­meira coisa que viu foi os porcos sacrifi­cados. Um estava em cima da mesa sendo destrinchado pelas mulhe­res, o outro boiava num tacho de água super quente, e logo mais adi­ante, perto do chiqueiro, um terceiro guinchava e se esperneava perce­bendo seu des­tino. Por fim, se rendendo deixou-se esfaquear pela mão firme do tio que decidido enterrou fundo a faca pontuda na carne do animal espirrando sangue que fora recolhido numa grande caneca.

E quando arrumavam as coisas para vir em­bora, o tio teve a infeliz idéia de arran­car sua calça na frente de todos. O que lhe doía não era o fato de ficar nu, as gozações, os deboches, as ri­sadas das meninas, das mulheres, e sim, o não poder se defender, o não poder revidar o tio sendo obrigado ao vexame.

Vigiando os movi­mentos viu quando o tio ao chegarem foi deitar-se para um pequeno e leve descanso. Esperou até que o tio fechou os olhos e devagar, sem fazer ru­ído, chegou bem perto. Sentia até o hálito do ronco.

Não esperou mais. Desceu a mão em cheio, foi um tapa estrondoso no rosto do tio que assustado não teve tempo de segurar o so­brinho que em desabalada carreira fugia do quarto.

A partir desse dia nunca mais falou com o tio.

Pastorelli

domingo, 5 de dezembro de 2010

Nódoa


Angélica T. Almstadter
 

Cuspi a alma em fagulhas,
Sobre a toalha impecavelmente branca.
Com alma sangrei vinho do brinde.
Ficou incrustado no linho mesa,
Sob seu olhar atônito, a marca exata
Da minha mais nobre emoção.
Sei que acalentará com cuidado
Até juntar todos os cacos,
Do meu amor derramado.

 
Uma taça de esperança tinta,
Para bombear meu coração apagado.
Um silêncio precioso para recompor
O espelho da minh'alma estilhaçada.

Meu pai.


Embriagado ele não perdia a consciência. Lembrava-se de tudo o que havia feito e dito. Parecia que o álcool desobstruía o seu inconsciente, onde há muito tempo guardado no sótão da sua vida, estava o porquê de agir como agia.

O que não conseguia dizer sóbrio, não sei por que motivo - talvez timidez, acanhamento, inferioridade ou mágoa - alcoolizado ele soltava a língua e toda a sua dor vinha à flor da pele. Não precisava do álcool para incutir, para ter coragem. Pois certa vez, estando sóbrio, defendeu-me a ponto de se atracar com um sujeito maior que ele. Fato que muito me deixou contente. Foi como se tivesse dito que me amava.

A partir de então, passei a vê-lo com outro olhar, de outra maneira, e penso, comecei a compreendê-lo melhor. Ele não era de muitas palavras, falava quase nada. Era preciso ler nas entrelinhas dos seus gestos, nos vãos dos teus olhos, como dizia minha mãe: ”É só olhar nos vãos dos teus olhos para saber se mente ou não”.

Um moleirão, do meu ponto de vista, eu, que sempre o comparava com os tios, passados todos esses anos, mais de vinte anos da sua morte, repensando a vida percebo que o compreendia e ele sabia disso, mesmo não dizendo a ele.

Era um acomodado – e este jeito de ser foi à única coisa que herdei dele - mas não era covarde. Não possuía ambição, muito menos inveja. Apenas ressentia-se de algo que nunca descobri.

Em sua visão modesta, o que tinha era suficiente. Para que querer mais? Não tinha jeito e não sabia ser carinhoso. Criado num ambiente rude, sem carinho nenhum, a maior parte da vida sem os pais, viveu a adolescência e a juventude sob o comando férreo do irmão mais velho. Talvez, isso era o motivo do seu ressentimento.

A meu ver, seus dois maiores defeitos foram: não ser ambicioso e o impulso desenfreado pela bebida. Não ter ambição até que não é defeito, porém, beber, ah! Este era terrível. Todo o dia chegava meio embriagado. As sextas então! Por ser dia de fundição, serviço pesado, terminava mais cedo, ele e os amigos, principalmente se tudo corria bem, sem acidentes ou atraso no planejado, iam para o bar festejar o dia bem sucedido.

Ah! Chegava em casa trançando as pernas, falando pelos cotovelos, repetitivo, xingando, blasfemando, nunca se referindo à mulher e aos filhos, sempre aos parentes, acusando-os da vida que levava. Quantas vezes à mesa, suado, sujo, fedendo, querendo jantar. E, enquanto esperava a mulher esquentar a janta, dormia sentado. Chegava a passar a noite assim, quando não escorregava para o chão. A mulher e os filhos não tinham força para levá-lo para a cama. Um homenzarrão de quase dois metros, uns oitenta quilos ou mais, como tirá-lo do chão? Ali ficava. A única coisa a fazer, era jogar um cobertor por cima dele.

O mais espantoso era seu relógio biológico. Todo o dia no mesmo horário, antes de todos, ele acordava. Tomava banho, fazia café, buscava pão, alimentava-se e saía pro trabalho. Todos os dias. De segunda a segunda.

A mulher mordia-se de tristeza. Para ajudar no orçamento, pedalava sua máquina de costura, cuidava da casa e dos filhos, não deixando faltar nada. Ele não gostava de vê-la costurando para os outros. Ela se angustiava para pagar as despesas que faziam no armazém ou quando vencia o aluguel. Ele não se preocupava. Dizia:

“Você é boba, mulher. Fica se matando. Pra tudo há de se dar um jeito”.

E pra tudo ele dava um jeito. Não sei como fazia. Comprava fiado no bar, na padaria, no armazém, mas nunca ficou devendo.

Se alguém caía de cama doente, preocupava-se além do que devia. Fazia todos os gostos do paciente. Uma vez deixou de trabalhar quase uma semana, só porque a filha doente pediu-lhe que ficasse ao lado dela. Ele ficou. Só saía do lado da filha para ir ao banheiro. Até que um dia chegou o boy dizendo que o chefe estava chamando ele.

Quando sofreu o acidente, ao sair do hospital, estava sem dinheiro. Seu irmão comprou os remédios sem que ele soubesse. Durante uma semana ele seguiu as recomendações médicas. Porém, um dia, chegou embriagado. A mulher deu bronca, preocupada e, sem querer, falou que o cunhado comprara os remédios.

No mesmo instante sua fisionomia transformou-se. Possesso, despejou um por um os remédios no vaso sanitário e puxou a descarga. A partir deste dia nunca mais tomou nenhum remédio.

Anos depois, a mulher disse aos filhos:

“Seu pai não está bem. Faz dias que ele não bebe”.

Dois dias mais tarde, ao chegar do serviço, respirando com dificuldade, falando pausadamente, pediu:

“Me levem ao hospital. Não estou passando bem”.

Passou por vários exames e foi constatado tumor no estômago. Operado, um mês depois, veio falecer. Sozinho no hospital.

Pastorelli