segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Saudades...ando com saudades





 Saudades...ando com saudades

              Rosa Pena



Ando com saudades de café com pão, de namorados dando beijinhos no portão, de pedir bênção a pai e mãe, (Deus te abençoe), do sinal da cruz que fazia quando passava na frente da igreja, de ver um varal cheio de roupa com cheiro apenas de sabão, de ver alguém sorrindo enquanto lava a louça com bucha vegetal, de sentir respeito pela policia, de cantar o hino Nacional com mão no peito e lágrimas nos olhos, de acreditar que o Brasil ganhou a Copa do Mundo porque jogou direito, de saber que o Zezinho filho do porteiro não vai morrer de dengue e que Maria feirante poderá ter um filho médico. Saudades de homens que usavam apenas o assobio como galanteio.Fiu-fiu!

Morro de saudades do tempo em que um presidente de uma nação era o mais respeitado cidadão do país.Que cadeia era lugar só de ladrão. Acho que andaram invertendo a situação.

Ando com saudades de galinha de galinheiro, de macarrão feito em casa com tempero sem agrotóxico, de só poder tomar guaraná em dia de festa, de homens de gravatas, de novela com final feliz, de pipoca doce de pipoqueiro, de dar bom dia à vizinha, de ouvir alguém dizer obrigado ao motorista e ele frear devagarinho preocupado com o passageiro. Saudades de gritar que a porta está aberta para os que chegam. Um saco destrancar tanto papaiz.

Saudades do tempo em que educação não era confundida com autenticidade. Hoje se fala o que quer, em nome de uma "tal" verdade e pedir perdão virou raridade.

Ando com saudades de ver no céu pipas não atingidas pelo efeito estufa.

Saudades das chuvas sem acidez, que não causavam aridez. Saudades de poder viajar
sem medo de homem bomba, de ser recebida com pompa em outra nação.

Atualmente reina a desconfiança no coração.

Sinto muitas saudades do rubor das faces de minha mãe, quando se falava de sexo totalmente sem nexo.

Hoje ele é tão banal que até eu banalizei.

Acho que a maior saudade que tenho é a saudade de tudo que acreditei.

Para minha filha não poderei deixar sequer a esperança. Hoje já não se nasce criança.

Livro PreTextos/rosapena
2003


ps: Mais uma crônica de minha autoria vagando na net sem autoria!
Rosa Pena




Obra completa em meu site pessoal.Clique em:
www.rosapena.com

sábado, 6 de agosto de 2011


Podrão?


Rosa Pena


Diga que me esqueceu!
Que o beijo não importou,
que fui apenas um cobertor,
num dia frio qualquer.

Negue o nosso amor.
Repita
que sou áspera,
unha sem lixa.
Hot dog sem salsicha
suco sem fruta.
Antes eu batia um bolão
agora virei podrão?


Você não me engana.
Ainda vejo sua língua,
umedecendo os lábios,
doida pra dizer que me ama.

Seus olhos?
Ainda procuram os meus.
São sábios.
Discordam desse seu
ridículo adeus.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Corpos.

Nos desenhos geométricos
A cortina rasgada
pelo tempo perdido
Deixa o clarão
da lua penetrar
No quarto de diáfana luz
Inusitados desenhos lambem
Teu corpo ao meu lado nu
Teu meigo sorriso invade
O vislumbre das
estrelas distantes
O vento afasta a cortina
Numa refrescante sombra
Num vai e vem delicioso
De carícias em teu peito
Em teu rosto
Em teus olhos
Em teus cabelos
Entre tuas coxas
Perde-se no escuro emaranhado
De pêlos suaves e doces
Permanecemos imóveis
No silêncio de nos dois
Corpos colados flui
Sensação do meu ser
Para o teu ser
Adormecemos abraçados
Na luz da lua...

Pastorelli

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Civilização.

Civilização será,
Morar na mata selvagem de concreto;
Ouvir o grito ressoando sem ser ouvido;
Ou o tropeçar constante no semelhante,
E o mentiroso cuspindo no próprio ser gerado?

Civilizado, o que é?
Será o traiçoeiro matando para não ser matado,
Ou o assassino fugindo dos algozes e da justiça?
Será o egoísta vendendo a alma ao diabo,
Ou o ganancioso roubando para não ser roubado?

Civilizado será
A crise insuportável no sobe e desce,
O medo escondido de ser traído,
Ou o dormir nas sarjetas imundas,
E o sorrir da criança pedindo esmolas negadas?

Civilizado, o que é?
Será a prostituta se oferecendo a cada esquina,
Ou o trombadinha na multidão afanando?
Será o brilho da faca riscando o ar,
Ou o sangue no chão esborrifado?

Civilizado... será,
A amante jogando no rio o amante cortado,
O marido traído batendo na mulher traída,
Ou a garrafa vazia numa boca a blasfemar,
E os veículos respeitáveis atropelando
Transeuntes descuidados?

Civilizado...o que é?
Será o vício tresloucado na mente dos filhos abandona­dos
Ou a rapinagem dos grandes a engordar?
Será o político falando manso a enganar,
ou as leis absurdas não respeitadas?

Civilizado será,
O progresso derrubando o que não é para derrubar,
O desmatamento sem necessidade,
Ou o morticínio dos animais,
E o índio queimado?

Civilizado será,
O poeta e seus poemas,
A escrita denunciante,
Ou a boca que nunca cala,
E a imprensa ultrajante?

Civilizado, meu Deus, o que é?
É isso tudo ou é uma
Desesperança esperançada
Na fé nunca perdida
E a crença na vida?

Civilizado, ah! Civilizado!
É o amor sempre procurado.
É o filho nascendo.
É o esplendor da velhice surgindo.
É a morte... sempre chorada.

pastorelli

terça-feira, 28 de junho de 2011


Minhas maçãs

Rosa Pena


Eram verdes!
Ficaram vermelhas...
Embrulhadas no seu olhar.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Cidade de alvenaria.

Na fria cidade
Procura-se o álgido amor
Mas o IRA medra ao apagar
Das luz os olhos que se calam
E os mortos choram
Nos escombros entre pontiagudas
Pedras de alvenaria
As almas se machucam
Em infrutíferas tentativas de viver
Mas a solidariedade
Tem olhos apagados
E para a cama ensangüentada deitam
Os corpos desfalecidos de amor
Em fuga desabalada
De si próprios em noites perenes


Na fria cidade
Onde se procura o álgido amor
O ensurdecedor estrondo
Dinamita o puma
E de vermelho é tingida a rua
A escuridão invade o que retorna
Na espera de sermos levados
Ao vértice do ômega fetal
Assim seremos o que somos hoje
O evolutivo ovo do esquecimento fluindo
Toda a amálgama da isolada vida
Vida que se encontram, se abraçam
Em felicitações mil


Na fria cidade de alvenaria
Não se procura mais
O álgido amor
Pois, mais uma vez fenece o ano
As bombas matam ainda inocentes
Tiros festivos fuzilam crianças
Braços esticados nas calçadas
E nas ruas de alvenaria
Rolam Cabeças Cortadas
À cada dia aprisionados


Na cidade de alvenaria
O álgido mor assassinado
Por balas é indiferentes
Praguejam seus mortos
.... e calam-se.....


Pastorelli

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Canto um.

Perseguindo-me tenho a vida cheia de pedras e suores, onde procuro desbastar as arestas entulhando o restolho na lixeira do passado; onde o alimento das amizades cria as desilusões de um amor talvez perdido. É uma ressonância de ecos que se misturam a outros ecos vibrando quase na mesma sintonia que vejo fugir o presente por entre os dedos calejados de melancolia. Mesmo assim resisto com moderada valentia me embebedando com a beleza da manhã que se inicia.


pastorelli

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Entrevista com Herculano Alencar




Nome: Herculano Duarte Ramos de Alencar

P - Onde nasceu?
R – Nasci em Piripiri, cidade do interior do Piauí.

P - Começou a escrever influenciada por quem?
R- Eu fiz um poema na adolescência, não recordo exatamente a idade, intitulado: “O Caboclo”. Um poema de cunho social, uma utopia pueril. Não consigo identificar uma influência específica, talvez do ar socialista que ventilava a minha casa. Depois, só voltei a escrever já nos últimos anos da Faculdade e quase sempre tendo como modelo o soneto “Contrição” de Bocage, apenas na forma, pois não tinha (e pouco tenho) domínio da métrica e tudo o mais.

P - Com que idade?
R – 14 anos, talvez.

P - Quem são os seus ídolos na literatura? Ou quem é seu autor de cabeceira?
R- Quase todos são poetas: Augusto dos Anjos e Bocage são os principais, mas gosto muito da sátira sutil de Saramago.

P - Você prefere poesias, contos, crônicas, novelas, ou qual outro gênero para ler?
R – Ficção, especialmente quando misturada com fatos e personagens da história.

P - E em qual deles fica mais a vontade para escrever?
R – Poesia.

P - Teve crises de largar tudo ou rasgar seus escritos?
R – Não, mas sempre que os leio, refaço.

P - Costuma ter inspiração pelo estado de espírito, por ler outros autores, ou por algum lugar ou situação?
R – Por todas as circunstâncias citadas na pergunta.

P - Tem o hábito de se levantar de madrugada para escrever se a inspiração convidar? Ou já teve?
R – Não, mas é comum que eu durma e acorde no dia seguinte com a idéia que me veio à cabeça.

P - Escreve em qualquer lugar (papel de pão, guardanapo, fila de banco, banheiro) quando uma idéia fica martelando?
R – Sim, só não consegui em papel higiênico (rss...)

P - Ganhou algum concurso? Qual?
R – Nunca participei de concursos.

P - Tem livros editados? Algum projeto em vista?
R – Não. Tenho projetos para dois livros.

P - Qual na sua opinião é seu melhor trabalho?
R – O que ainda vou fazer.

P - O que sente não ter realizado?
R – Um pedido de desculpa.

P - Qual o impacto dos e-grupos no campo da literatura ?
R – Uma porta de entrada democrática para novos talentos.

P - Até que ponto a Internet favoreceu a leitura/escritura ?
R – Até o ponto atual.

P - Poderíamos afirmar que as novas tecnologias contribuíram para o desenvolvimento de novos gêneros literários ?
R – Não tenho certeza se podemos chamar de novos gêneros literários, mas novas aventuras, sim.

P - Fale-nos um pouco do seu trajeto literário :
R- Eu sou um poeta em formação e assim pretendo ser até o fim. Faço e refaço tantos poemas que já nem sei qual é o original e o derivado.
“O Caboclo”, meu primeiro poema, acompanhou todas as mudanças da minha personalidade, perdeu e incorporou valores e caminha comigo para a aposentadoria.
Não posso dizer que tenho um “trajeto literário”, mas um rumo: não ter pudor de dizer-me poeta.

P - Usa algum método para escrever os seus poemas/prosas/contos ?
R – Nenhum método formal, mas tenho um paradigma: o título é conseqüência do conteúdo, portanto é o último verso a ser escrito.

P - Que conselho daria a alguém que deseje a vir ser escritor ?
R – Nunca se julgue completo.

Um poema de Herculano Alencar
Eu poeta, por mim mesmo

Poeta amador (literalmente)
eu sou, pois que escrevo por esporte.
Escrevo sobre a vida, sobre a morte...
e mais o que vier na minha mente.

Poeta, sou poeta, tão somente,
pois faço poesia "de ouvido".
Às vezes faço versos sem sentido...
aqui e ali... um verso inteligente!

Poeta amador (de curvo porte)
eu sou, já que a luz não deu-me a sorte
e arte não deixou-me a porta aberta.

Poeta amador eu tenho sido
e sei que inda serei, mas não duvido
que um dia alguém dirá que fui poeta.
Cula

Poderá ler alguns dos poemas de Herculano acessando http://recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=2228

Obrigada por nos conceder esta entrevista!

________________________________________
Entrevista feita e elaborada por Angélica T. Almstadter com a colaboração de Cristina Pires
Membros do Grupo Ateneu

domingo, 8 de maio de 2011

Dia das mães!!!

Angélica T. Almstadter
 

Embora dia das mães seja todos os dias, alguém resolveu nos dar um dia especial que consta da folhinha, e do calendário de todas as lojas; para que os filhos pudessem gastar seu dinheirinho comprando um presente pra limpar a barra com a mamãe. Aqueles que não tem dinheiro para comprar nada abraçam beijam e dizem "eu te amo", mesmo que seja para cumprir tabela.
Não, eu não duvido que ame, mas quem disse que precisa dia para abraçar a mãe ou para dizer : eu te amo?
Nós mães fazemos isso todos os dias quando preparamos a comida, quando cuidamos com carinho de suas roupas para que fiquem limpinhas e cheirosas.
 
É claro que não precisa babar em volta da gente, nós percebemos o quanto tem de obrigação esses gestos exagerados nesse dia, mas não deixem por favor esse dia passar em branco, sem um telefonema, um gesto carinhoso, porque embora a gente insista em dizer: não precisava...Vamos ficar muito tristes se constatarmos que nossos filhos não dedicam a nós nem um minutinho do seu dia.
 Dificil entender as mães não é? Pois é, a gente fica tão sensível quando se diz que esse dia é só para as mães que acabamos por ficar derretidas, mesmo quando dizemos que isso é uma bobagem e que nosso dia é todos os dias.
 
O peso da data acabou por incorporar nosso calendário também porque para onde quer que olhamos vemos referências; seja no encarte do supermercado, nos autdoors, nas propagandas de tv e em todos os lugares possíveis se vê mães estampadas como garota propaganda!
 
Assim, se preciso mesmo de uma data para que notem a importância da minha existência como tal,  porque ficou tão banal receber de mão beijada todo conforto que posso proporcionar aos meus filhos; quero-o com toda pompa e honra que possa merecer.
Quero comida pronta, ou almoçar num bom restaurante onde haja comida limpinha e bem feita, como a minha, então filhos queridos nada de encher minha casa para o almoço! Antes que me joguem na cozinha cozinhando para um batalhão lembrem-se que o dia das mães é para dar alegria para essas míseras mortais e se eu disser que fico feliz nesse dia passando parte dele com a barriga no fogão e na pia, podem acreditar que minto, afinal faço isso o ano todo.
 
Já que a data está instituída, vou gozar dela como posso e quero, terei um dia só meu e não adianta quererem me colocar no molde de mamãe padrão. Estou indo curtir o meu dia das mães me divertindo por aí!
Estão rindo de quê? Se tivesse o dia dos filhos, o que vocês fariam?
Fui....
 

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Sonhos estridentes


Angélica T. Almstadter
 
Por que insistem em me acordar os sonhos?
Por que ainda me inquietam tanto?
Se deveriam me embalar risonhos;
Recostarem o corpo n'alma sem pranto!
 
Ah! Meus sonhos livres sem fronteiras!
Sacodem e  me atordoam o espírito,
Reviram as ilusões costumeiras,
Desassossegam o corpo contrito.
 
Presos a um  silêncio onírico,
Apascentariam a alma romântica;
Não fosse a razão avessa ao lírico.
 
Sonhos haverão dentro da quântica,
Onde a razão sempre vence o empírico?
Sonho e romantismo dirá a semântica!

canção concreta

a canção
cantada
forma
figura
da mulher
amada
ficando
formada
na letra
da canção
figurada
em forma
de canção
cantarolada


pastorelli

sábado, 30 de abril de 2011

Caça.

Sejamos a caça
Já nada podemos fazer
Enquanto presas
Que somos.

Até o dia da liberdade
Que concederemos
A nós mesmos:
Nossa liberdade.

E então cantaremos
A nossa realidade.

Em ecos de gritos
Para humanidade
Contando os dias
Antigos,
Nossa vaidade
Que agora, apenas história
- e seus covardes -
fizeram da glória
de nós cidadãos,
apenas punhado
de alavãos.

Sejamos a caça
A caça atraente
Há mais graça
No viver pulsante
Mais atrativo
Há mais prazer
Convidativo
Desde que nós não
Nos entreguemos numa
Bandeja de prata.

É... sejamos enfim, caça.
Só de pirraça.
Do passar dos dias.
E vejamos do que trata
a tal caça e com quem.

E preparemos o alvo
para não ser bombardeado.
Que seja avisado
de antemão!
Para não sermos comidos
faz-se necessário conhecer
o inimigo.

Território---> connectingconnecting
connectingconnectingconnectingconnecting
connectingconnectingconnectingconnectingconnecting

connected.

Zona reconhecida.
Av. Paulista, seis da manhã.
Estrada
Quase vazia.

Pastorelli / Ana Luísa Peluso

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Contos Saramacoutos

Já não descreves, Estou duende, Estou duende do meu lado indireito, Dizem que as cornucópias melhoram as obras com as noitebruras, Ficam melhores que nós, Isso nem me amorna nem me convalesce, Vou ficar para semente na terra abatida, Que pitimagens, Ao menos terei dois registos, No cartório e na sepultura, Ambos por condenada à vida, Quem te apreçará os filosofemas é que eu não sei, Isso não me entranha, É auto-vidente, Euro corrente nos sonhos anoitecidos, O melhor é deixares que os teus corpos se estendam e se entendam, Teriam que ser amados antes de ser amáveis, Essa é uma reflexão em sapato de vidro, a tua questão fada-seca, Não, É a minha metafísica ...



Cristina Pires
2006

Eva proíbida

Eva proíbida
Cristina Pires

Dizia-me Sebastião, que deveria escrever - Pelo menos, pelo menos! - uma crónica, ou conto, por mês. Esta comecei-a há seis anos, e só hoje a dou por terminada.

Olha, escreve sobre a tua vida! Achas que a minha pouca vivência tem algo que possa despertar a curiosidade de um leitor? Vamos lá! ao menos um leitor, tens! Eu, por exemplo. Tu escreves, e eu leio. Para isso tenho que ter tempo, caneta, papel e ânimo. E neste momento sobeja-me, papel e caneta. Pois eu podia contar-te a minha vida, inteirinha! E tu, escrevias. Sobeja-me papel e caneta, repeti.

Tu lembras-te do Carlos? Devo ter ficado com cara de espanto. Olhe o leitor se eu lhe perguntasse se se lembra do Zé. Zés há muitos, sua palerma! - tenho a certeza que seria isso que pensaria. Um nome pessoal, só, torna-se impessoal, se não for acompanhado de um apelido que o valha: o Zé do talho, o Zé da mercearia, o Zé Favinha, etc., etc. Só para o meu tio Duarte, é que são todos Zé Maria do Pincel, quando não conhece o apelido que o valha.

Do Carlos Alberto, pá. Aquele que te esfolou o joelho quando eras miúda. O da Dona A.! Não me esfolou o joelho. Caí e esfolei o joelho por causa dele. Não é o mesmo. Ainda tenho a cicatriz. Aquele, sim, é que era um mariquinhas. Sabes que se tentou matar duas vezes? Sei, ou já te esqueceste que vivia no prédio ao lado do meu? E, na primeira tentativa, quem ficou esfolada fui eu. Tudo por causa do Comandante Koenig, das luas e dos céus. Quem quase foi para o céu, foi ele, e eu para o purgatório porque me esqueci que a directora da escola queria falar comigo, e quase que não apareço. Que grande barraca foi aquela, hã? Pois foi. Ele tinha más notas, e o pai castigou-o sem o espaço. Não fez outra, enfiou um frasco de comprimidos goela abaixo, e cá vai disto ó Evaristo. E tu que foste a correr para falar com a directora. Se não tivesses um peso na consciência, não tinhas ido a correr.

Quase que lhe esmurrei a gargalhada. Estávamos, afinal, a falar de coisas sérias e antigas. Coisas com um quarto de melancólico século. Como o tempo se esvai...

Estou, agora, a lembrar-me dele, à varanda, no primeiro andar. Primeiro aparecia a mãe, e depois, ele. De tarde, cruzavam os braços e as pernas sobre uma mandriice descarada, e ficavam no parapeito da janela à espera dos burburinhos. Gostava de coscuvilhar, o malvado. Mas também era útil. Às vezes avisava a vizinhança, aos berros, quando chovia: - Ó D. Sara, olhe a roupa! D. Zezinha, tem o canário cá fora. Ó D. Maria do Carmo, está a chover.

A casa, sempre um brio. O meu Carlos Alberto, limpa a casa melhor que eu, dizia a Dona A. a quem a quisesse ouvir. Também me lembro, que era ele que assava as sardinhas. Punha o grelhador à janela, apoiado nos ferros da corda de secar a roupa. Depois, era uma azafama a limpar os vidros da marquise. Ah! mas não pense o leitor que o Carlinhos não avisava, antes, que ia assar sardinhas. Corriam a fechar janelas, com medo daquele cheirinho, que, agora, deu-me saudades. Coitado. Quantas vezes não lhe chamei borboleta e ele não se incomodava. Dizia-me que gostaria de ser uma: alegre e livre. Pior eram os que lhe chamavam menina Carlota. Cheguei a zangar-me com aquela malta. Até à porrada andei.

O gajo tinha jeito para o teatro, e para o ballet, não tinha? Pois tinha, mas proíbiram-no, que essas coisas eram coisas de menina. Fizemos teatro juntos. Então, eu não sei! E porque é que não continuaste? Até me lembro da tua mãe, sempre a dizer que tu tinhas muita queda para o teatro, só não tinhas era onde cair.

Desfigurei-o. Meti-lhe a mão à boca, desapertei-lhe as bochechas, enfiei-lhe o braço até às entranhas, e arranquei-lhe os bofes. Bofete-ei-lhe as gargalhadas insolentes. Na próxima crónica, mato-o, esfolo-o! Deixo-o como um cristo. Desvendo-lhe os mistérios, como ele desvenda os de Carlos.

Tu achas que ele já nasceu com aquela tara, ou...? Nã! Então, tu não sabes que a coisa pega-se? Tens com cada uma, Sebastião. Diz-me, tu eras muito amigo dele. Andavam sempre juntos... Chega para lá essa boca! Ele é que não me largava. Até para ir ao baile dos Penicheiros, tinha que ir com ele atrás. E de miúdas, nada! Aquilo afugentava as miúdas todas. Deixa-te de coisas. Bem que aproveitaste. Quantos copos é que ele não te pagou, diz-me? Ora, pagou-me o tempo que o aturei, e ainda ficou a dever-me.

Mas o tempo não queria aturar o Carlos, pensei. Não sinto pena dele. Sinto que não era compreendido pelo tempo, e que o mesmo ainda hoje lhe deve. Nunca ninguém lhe conheceu uma namorada. Amigos, tinha alguns. Uns para cada ocasião. Sebastião quando andava penado, achegava-se a ele. Outros... achegavam-lhe. Um, mais que os outros.

A segunda tentativa que fez para acabar com a vida, já era adulto. Saía furtivamente de casa, durante a noite, e regressava de madrugada, antes do acordar da vizinhança. A mãe fechava os olhos, mas o pai arregalou-os até ao branco, até ficar cego. Proíbiu-o de sair de casa, e de ir ver o Adão. Desta vez não engoliu comprimidos. Atirou-se da janela do quarto.

Para mim, nunca ele tentou matar-se, ou suicidar-se. Engraçado! Existe furtar e roubar. Furtar é apoderar-se de algo alheio, sem violência. Roubar, é subtrair para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência. Chego ao término desta crónica sem saber se Carlos furtou-se ou roubou-se. Uma coisa é certa: roubaram-lhe o paraíso.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Menina super sincera

Estrelas não ouço!

Angélica T. Almstadter
 
Não Bilac, não ouço tuas estrelas,
não que com elas não converse.
Há muito tento ouví-las, entendê-las;
acho que minha prosa de nada serve.

Amar talvez não tenha aprendido;
não de fato, para ouvir estrelas,
diria que por certo tenho esquecido
de acarinhar a alma para merecê-las.

Ora direis ouvir estrelas! Invejo-te!
Tão distantes dos meus olhares;
não ouço ruído sequer! Rogo-te!

Dá-me um tanto de teus sentires
para que um dia; eu as ouça. Peço-te!
Caso contrário meu chorar há de ouvires!

(fruto da Semana de Olavo Bilac no Ateneu)

domingo, 24 de abril de 2011

Busca frenética.

A esferográfica
Não tem o poder
De no papel deslizar
Como um filme noir
Cult movie romântico
Político satírico
E numa busca frenética
Nos abismos de mim buscar
A beira de um copo de cerveja
Os cristais estilhaçados
Por uma bala perdida
Que do seu esquecimento partiu

A minha esferográfica
É uma esferográfica comum
Que obedece os elétricos impulsos
Que a mão recebe dos neurônios
A rabiscar a traçar a riscar
Estas palavras frias e soturnas

Palavras
Sem a concreta transparência
Morrem afogadas solitárias
Na última gota de cerveja
Ao fechar do último bar

Minha esferográfica
Não tem o poder de transformar
O frio em quente
De dissipar a melancolia em saudade

Minha esferográfica
Está estagnada na noite gelada
Dos meus olhos que se fecham
Ao transpor os umbrais
Desta vida torta
Concreta sem reta

Minha esferográfica
No papel desliza
Numa busca frenética
De encontrar o incontrável
De querer o inquerível
De achar o não achado

Minha esferográfica
Mansa repousa
Tranqüila calma
Ao som de uma
Noite fria de setembro

pastorelli

sábado, 16 de abril de 2011


Do Jeito da Rosa

Elane Tomich


Ando tão encantada
com os meandros do nada
que antes que eu vire pó
hei de recompor o samba
feito de uma nota só.

Numa dessas vai que acerto.
Se cuide, João Gilberto!


elane_tomich@oi.com.br

quarta-feira, 13 de abril de 2011

@


Cochichando


Rosa Pena

Em suas mãos (bem escondidos) permanecem cativos os fios do tempo (em que sonhávamos). Eles não se rompem (nem se romperão) e se confundem com as linhas de vida da sua palma. A distância entre seus dedos é igual a nossa (pequena e grande) e eles (por hora) não fazem o V da vitória. Estão sem a alegria de outrora. O amor nos deixou frágeis (sempre deixa), sem a coragem de sermos o que fomos até ainda pouco (nós nos achávamos uma fortaleza).

Em suas mãos (bem escondidos) os fios farão uma ramagem que você sentirá quando eu (volta e meia) aparecer em suas lembranças (não vou deixar você me esquecer). O amor desconhece o prefixo ex, (quando verdadeiro, ainda que passageiro).O nosso é.


terça-feira, 12 de abril de 2011

bom dia, chuva

bom dia chuva gloriosa chuva
não gosto de você mas é preciosa
necessária com suas devastações
inundações e tudo mais
prefiro mais o inverno
eu te aceito chuva
mas com uma condição
chova lá no sertão
onde a terra esturricada
pede um pouco de sua atenção
chova nos campos
para que vicejam as plantas
alimentarem os famintos
mas não chova na cidade
justo na hora que eu saio
para o cansativo trabalho
também não chova
quando saio a passear
e nunca quando estou
no micro a trabalhar
aceita minhas condições?
então pode chover a vontade
ah! mas sem raios e trovões

pastorelli

quarta-feira, 6 de abril de 2011


Fato consumado

Rosa Pena



Bebo conhaque, sal de fruta, até cicuta.
Nenhum veneno terreno mata
nossa ternura filha da puta!

terça-feira, 5 de abril de 2011

A Intrusa


Angélica T. Almstadter



      Ela chegou toda faceira, olhou para um lado para o outro e me encarou. Muito desaforo da parte dela, ficou se achando o ovo da marmita, passeando pra lá e pra cá, como se meu quarto fosse dela.
Eu observando ela e ela a mim. Ô criatura desenvolta, nem  tava aí pra mim, pôs aquelas patinhas cheias de pelinhos na minha frasqueira, ai meus creminhos; quanto atrevimento!
      Eu ia e vinha suando frio, e ela dona absoluta do pedaço. Cadê que eu conseguia assistir a alguma coisa na TV, meus olhos ficavam pregados naquela doninha xereta, que andava pra todo lado, cheia de pose. Enquanto eu não conseguia sair de dentro da toalha pra apanhar alguma roupa; ela me exibia aquelas asinhas brilhantes, eu nem chegava perto dos meus sapatinhos... e ela balançando as anteninhas, ligadíssima na minha aflição.
      Quando eu me enchia de coragem e avançava sobre ela, ela zombava da minha pouca habilidade e pra que eu não me sentisse muito deprimida ela se escondia e deixava que eu me vestisse e até dormisse algumas horas. Só que nossa guerrilha pelo quarto reiniciava toda manhã, eu de um lado refeita e pronta pra lutar pelo meu espaço, e ela soberana voando acima da minha cabeça. Covarde! Não descia à minha altura pra me encarar de frente.
Francamente eu já não estava mais suportando ela doidona com o sprays que eu dava pra ela cheirar, eu passando mal e ela zureta, mais acesa do que nunca.
     Foi num desses dias em que eu estava de TPM que resolvi montar guarda de longe, saia e deixava ela se sentir a dona do meu quarto, podia subir e descer, e eu aproveitava da minha insanidade temporária pra elaborar a minha vingança. Enquanto elazinha se deleitava nas minhas macias e cheirosas coisinhas, enquanto ela usava e abusava da minha intimidade (que ódio!) eu engendrava o meu ataque.
      E foi quando ela achou que eu havia desistido, que ela já podia casar e ter filhotinhos morando no meu quarto que eu entrei de mansinho porta adentro na pontinha dos pés, sangue frio, e suando frio ( isso ela não sabia) fingindo que estava tudo bem,e não tinha notado aquela  babaca. Disfarcei e voei de vassoura sobre ela, num ataque ordenado, um bombardeio de vassouradas, como se fosse aqueles ataques dos  homens bombas prontos pra matar e morrer! Ela bem que tentou reagir, e voar na minha direção como sempre fazia pra me intimidar, mas eu fui mais rápida que ela e não dei tempo dela armar o vôo, derrubei-a como se derruba um caça e disparei sobre ela toda a minha gana.
     A paz voltou, mesmo com tudo fora do lugar, a cama no meio do quarto, livros e cds espalhados, papéis, apostilas e sapatos sobre a cama, sentei e apreciei com satisfação o cadáver daquela intrusa barata voadora bem à minha frente, no chão.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Desapego

Angélica T. Almstadter

 
Um pouco a cada dia, solenemente,
Intensamente em cada hora
Morro. Com satisfação e gozo.
Delinqüente sobrevivente que sou
Antevejo a epopéia do desenlace,
Sufocada na agonia.
Alma túrgida de funestos desejos,
Abraço em desespero o caos
Que antecede o silêncio sepulcral.
 

Balada do caminheiro.

Indo pelo caminho
caminhante caminha
ante a amplidão
do teu destino.

Destino destinado as pedras
chutar chutando
do cauteloso caminho
predestinado.

Caminhante caminha
cuidadosamente
debaixo do sol a pino
em circunstâncias de perigo.

Caminho caminhante caminha
caminha o seu destino
cautelosamente cuidadosamente
em cada esquina.

Cuidado caminhante se não poderá
uma faca riscando o ar encontrar
que interromperá
o teu destino.

sem data
pastorelli

domingo, 3 de abril de 2011

Fácil, Táctil e Fútil

Angélica T. Almstadter


Redesenhado por um desejo fácil
Entrou pelos poros descobertos,
Pretendia aquela vida frágil
De muitos sonhos encobertos

 
Amor cáustico de lavras fúteis.
Entre meus olhos tristes flertou
Provocou tantas emoções inúteis
E sem adeus, o mundo ganhou.
 

Maria-sem-vergonha sempre trazia
Nas mãos vazias de paixão,
Transpirava uma vida fria.
 

Tão logo me compreendeu;
Bocejou angústias pífias
Virou a página e se escafedeu.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Olhos

Foto : Olhar - Douglas Nascimento
Angélica T. Almstadter

 
Há olhos cravados
nas paredes
na rua,
no chão.
 

Não há olhos
de ler,
de chorar
a cura, a alma pura.
 

Olhos rodeiam
a imensidão
sem nada ver.
 

Nas órbitas tristes
de um branco sem fim
moram os olhos
de uma vida.
 
A vida inteira
se percorre
pelos olhos;
e o olhos vida afora
percorrem a vida.
 

Morre-se
sem dos olhos
entender a razão.
 

Sem deles
ter impresso a paixão
a tristeza dos dias,
o sorriso
ou a dor.

terça-feira, 29 de março de 2011

Balda da forma.

A forma figura
Em forma
Ficou figurada

Ao fitar a forma
Figura figurada
Em forma figurativa
Foi formada

Nesse fitar fixamente
Foi transformada
Em figura fixamente
Focalizada

A figura
De fixamente focalizada
Ficou desfigurada

Mas, a figurativa
Figura fixamente focalizada
Ao ser desfigurada
De figura foi
Em fina forma
Figura formada

pastorelli

quinta-feira, 24 de março de 2011

Balada da foram nº 2.

Na tua mente
uma forma figura
foi formada plenamente
com o tema de:
forma figurada.

Dessa forma figurada
fixamente a figura tornou-se
figura projetada.

Forma figura
projetada
figura formada
ficou figura deformada.

Como se tornou figura
deformada
preciso foi que a forma
figura de figurativa forma
em fina figura ficasse.


pastorelli

domingo, 20 de março de 2011

Celebração da Realidade






Celebração da Realidade

Rosa Pena



Ele se foi sem se despedir dela, caso contrário Ângela teria lutado para que ele não partisse. Seu filho morreu por conta de um marginal que o assassinou por um celular Vivo, o aparelho, seu menino Morto.

Ela não consegue sentir vontade de indultar quem o matou. Sente muita raiva do marginal -bomba, dos malditos direitos humanos que insistem em só abraçar a escória.

Ângela virou uma nuvem carregada de tristeza, uma neblina ambulante com constantes chuvas na menina dos olhos, que agora virou uma velha quase cega.

Mas, além da perda do filho (como se fosse pouco), ainda é obrigada a conviver com a culpa de não saber perdoar, de ter pensamentos de vingança. Sim! A paranóia reinante é não se enlutar, não dar vazão ao choro, que dirá desejar o pior para aquele que acabou com sua vida. Faz mal!

A quem? Isso de negatividade atrai! Atrai o quê?

A Márcia Cabrita (atriz), recentemente numa crônica, afirmou que não nasceu para ser heroína. Ela não tirou de letra o câncer que apareceu em seu ovário. Não conseguiu imaginar a quimioterapia como uma viagem à Disney. Chorou todas e mais algumas e ficou muito grilada com seu justo sofrimento, pois diziam para ela, que só sobrevivem as doenças, pessoas de alto astral. Fique muito doente e sorria. Sofreu duplamente por não conseguir encarar um câncer com otimismo. Faz mal!

A quem? Isso de negatividade atrai! Atrai o quê?

Quando eu parei de fumar entrei numa depressão terrível e não consegui sentir a tal felicidade que os “fodões” garantem como certa.
— É uma delícia viver sem nicotina! Estranhamente eu só conseguia pensar no Fernando Pessoa com o olhar entre fumaças na Tabacaria.

Já se passaram trinta meses e agora gosto demais do meu cheiro e de menos de minha contradição ao sem lenço e sem documento. Meu cagaço venceu minha liberdade. Costumo dizer que vou voltar a fumar quando completar setenta e cinco anos. Já ouvi diversos avisos: Cuidado com esses pensamentos contrários, pois assim você volta agora ao vício. Faz mal!

A quem? Isso de negatividade atrai! Atrai o quê?

Atrai. Atrai. Atrai! Afinal... Atrai o quê? Castigos?
Quanta presunção dos mortais! Desde quando Deus classifica quem vai se dar bem ou quem vai só sofrer? Ele tem suas razões que a nossa razão desconhece. Que fé é essa que obriga as pessoas a mascararem seus sentimentos?

É permitido, mais ainda, é saudável chorar de dor, de medo, temer a morte, pedir castigo para o algoz que lhe feriu, sonhar que o ex morreu, ficar injuriada de abrir mão de um prazer e apesar de tudo acreditar que as coisas ruins acontecem assim como as boas num sistema de cotas. Cada um tem as suas.

Ele pode (sensação que vem com o luto) ter perdido a mão numa tela, mas a aquarela permanece com todas as cores e certamente novas serão pintadas com cores vivas, bem vivas como a Vida.

www.rosapena.com

estrela artificial

angélica t. almstadter


uma estrela solitária
que brilha e brilha
longe dos olhos da razão

 
outrora meiga e solidária
de luz, acercada ilha
alegrava meu coração
 

outras galáxias hoje habita
visitando belos cometas
na realeza do universo
 

na solidão das crises se agita
na ilusão dos betas
na teoria do reverso
 

entre fótons e cósmica poeira
se afasta da mãe Gaia
prepotente estrela primeira
 

seu brilho audaz se esgueira
na ressonância primária
impressa na antiga soleira

sexta-feira, 18 de março de 2011

Engasgado

Angélica T. Almstadter
 

Um sonho engasgado, dormiu no meu peito
Tantas pontas tinha o danado;
Que me fez em tiras, o peito dilacerado.
Dentro desse sonho perfeito,
Guardei desejos desesperados;
A fala rouca, a fina flor exposta
Em camadas mutiladas de saudade.
Doeu tanto que cresceu arranhado,
Apertado e sem proposta.
Quando me acenava de felicidade,
Na poça de sangue derramado;
Brindei com um aceno breve,
Cerzi os rasgos com coragem
E bem antes que recobre a razão,
Me espalho em pedaços na brisa leve;
Meu prenúncio de estiagem,
Recheado com acessos de solidão.
 

quinta-feira, 17 de março de 2011

Artificialismo.

Sentimentos acarretam perda.
Você me pergunta:
Por que tanto ressentimento?
O que demonstra
Que você não percebe nada
De você não quero nada
Nem amor
Nem paixão
Nem reconhecimento
Se ainda não sabe
Só quero de você
O supremo esquecimento eterno
De me esquecer de que sou só


O dia brilha
Apesar da manhã escura
Mas a rua reflete o reflexo
No asfalto úmido
A pura luz artificial
Que um dia foi nosso amor
Do nosso sentimento


pastorelli

quarta-feira, 16 de março de 2011

Japão




Rosa Pena


As cerejeiras, mais ou menos vivas,
insistem, com muita garra, em acreditar:
Paz nas terras, nas águas e nos homens.

quinta-feira, 10 de março de 2011

AMOR CIBERNÉTICO.

A vida corre suave louca branda
No fone de ouvido enquanto trafego
Nos trilhos urbanos do dia a dia
A luz acende o brilho cinzento opaco
No final do túnel das esperanças nunca esquecidas
Rostos morenos brancos loiros ensandecidos
De beleza fria e paz concreta transitam
Sua carência sexual pelos cantos da alma
Olhos bebem o gás da violência
Nos botecos jornalísticos e no sufar internético
Devorada pela urbanidade desenfreada
A inocência se encolhe nos bueiros poluídos
A boiarem nos rios agonizantes
Os sonhos se estilhaçam no vidro sujo
E a mão permanece a espera do golpe
Que fisicamente não se sente
Idéias projetos delineiam sentimentos fúteis
Sem expressarem a verdadeira sagacidade real
O riso se funde no perpétuo irisante
Onde infinito da agonia resvala
Na linha divisória da felicidade e da alegria
Quem me dera ter da paixão
O sangue vermelho da sensibilidade
E trafegar no fluxo da razão
Sem perder o limite da realidade virtual
E amar você entre
plugs chips software bbs internete...


pastorelli

sexta-feira, 4 de março de 2011

amor acrilico

meu peito
a clara luz do dia
clama pela vórtice do teu ser
lança o laço que laça
o ardor do bico rosado do teu seio fraco

passa cortante por inteiro
pelo leito e clama
clama e grita
ao contato do teu corpo que inflama

meu peito
sussurra e chora
ao beijar o teu ventre derradeiro
corpo acrílico no leito pede
por teu acrílico sexo

silenciosamente penetro
entrelaço amorosamente
teu ser estremecido
sob o jugo do meu ser
meu peito
arfa desperto
pelo barulho agridoce do rádio relógio
suspira aliviado pela urina quente
em contato com a fria louça do sanitário

estremece
na tépida claridade do frio
frio que varre
a pouca quentura que há

meu peito
a clara luz do dia
lembra a noite quente
saudoso
que ficou no quente leito

apago a pouca luz
que havia no amor recente
se escurece morre
em cima do leito quente que era

meu peito
tépido gelado
chora ri dentro do quarto frio
beija no lençol
teu rosado seio que se foi

meu peito
morre... afogado
num copo de bar
afogado dentro da noite
melancólica de um sábado


sem data
pastorelli

quinta-feira, 3 de março de 2011

intimidade poética


Intimidade poética


Rosa Pena



Não pude te ver nu!

No mundo não tinha

só eu e tu.

Não pude te chamar de meu!

Na vida não tinha

só tu e eu.

Segue essa poesia

tentando dizer nós.

Enfim sós.





2004

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Amar.

amar é ter força...
uma força que seja constante
que derruba preconceitos

amar é ter força...
uma força que seja bela
beleza que ajuda enfrentar o dia a dia

amar é ter força...
uma força que seja meiga
meiguice nas horas certas e noturnas

amar é ter força...
uma força que seja doce
docemente abraçar a amada...

amar é ter força...
uma força que seja sorriso
sorriso de um instante alegre de criança

amar é ter força...
e com essa força transcender
a vida totalmente


pastorelli

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A vida rola.

Às sextas
Rola a bola
No verde pano
A vida verdejante
Que rola a gente
A não lembrar
A vida de antes

Amarela vermelha
Vermelha amarela
Se discute as decisões
Nas grandes tacadas
As frustradas emoções

Às sextas
No pano verde
A vida rola verdejante
Jogando a gente
Nesta vida delirante


pastorelli

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Espaços

Angélica T. Almstadter
 
 
Grande esse vazio que cresce
espande por todo o espaço.
Enormes esses nadas que se amontoam
amoldando formas vazias e sem cor.

 
Dentro desse infinito espaço
que a nenhuma lógica obedece;
verdadeiros, só os sons que ecoam
mutilados por vozes em dor.
 

Deslocando-se de lá pra cá,
de cá pra lá, à deriva,
trombam com silêncios ácidos,
falas ocas e criações pífias
fingindo possuir gentil sabor.

 
Tantos compartimentos azuis
rosas e furta-cores, já emboloram
sob o cansaço da luz tênue que se apaga.

 
Foram recolhidos os sóis,
as luas e seus mistérios surdos,
não mais razão para colecionar:
ilusóes, sentimentos, nem chuvas doces;
atrás do pano  a vida envelheceu
de tanto esperar...

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Anjo de Pedra




Cissa de Oliveira

“Sabe lá o que é passar mais de oitenta anos sendo lembrado de forma humilhante sobre alguma coisa que você nem ao menos precisa esquecer? Por aí você vê que ter nascido preto foi o meu primeiro karma. Não, azar, que karma é palavra que preto do meu naipe não conhece; ou porque não conhece mesmo ou porque pensam que a gente é burro, por fora de tudo, sem percepção. Se a gente deixa, vai ficando o dito pelo não dito, o pensado pelo não pensando e por aí à fora. O segundo karma foi ter nascido pobre. O terceiro: continuar pobre, mesmo aposentado, e pior, dependente de filho”

Naquele dia Otoniel tinha acordado com a revolta da vida toda. Pior, revolta calada, daquela que mói por dentro sem fazer barulho, até deixar o sujeito uma casquinha assim, de nada. Casquinha fiiiina, curvada de tudo; qualquer coisa quebra, de atropelamento a ingratidão de filho.

- Já ta pronto?
Otoniel, calado estava, calado ficou. Ara!
- Coloca o cinto, pai... Não ta vendo que a calça ta caindo?

Otoniel abotoou o cinto num dos quatro furos que ele mesmo foi acrescentando desde que foi morar na casa do flho. Um a cada ano, mais ou menos. A ponta do cinto pendia. Era um tanto de tira de couro, fina, meio molenga, tão molenga que não se segurava nos passantes do cós da calça preta. Ele se arrumava bem devagar, o que irritava o filho.

Logo na porta, ao sairem, o vento encheu a camisa clara de seu Otoniel, um dos seis moradores do barraco número 528 do Parque Esplendor. Nem o nome bonito consertava a realidade do lugar. Seu Otoniel seguia meio curvado. Os pés descalços das crianças, pra lá e pra cá, atrapalhando a passagem pelas vielas estreitas. Vez em quando ouvia uma saudação, intuia um olhar, alguma profunda consternação. Não era pela pobreza não, que isso era coisa que ali não faltava. É que os vizinhos sabiam...
Venceram o aglomerado de minúsculas casas. Do outro lado, o muro pintado de vermelho, o portão grande e os carros de bombeiros.
- A civilização ...
- Nós também somos civilização!
- É mesmo? Resmungou Otoniel, colocando o chapéu de palha sobre a cabeça coberta de fios brancos.

Caminharam por cerca de quinze minutos. Seu Otoniel com dificuldade, Alcides, o filho, com impaciência. Atravessaram a passarela e logo seguiam pelo asfalto da rua paralela à rodovia. Os portões altos das casas mostravam bem a preocupação da vizinhança para com o Parque Esplendor. Ah, que aquilo incomodava seu Otoniel tanto quanto o sol daquele dia, por mais que o vento arejasse por dentro da camisa dele, com um movimento que mais parecia brincadeira. Brincadeira de criança.

Suzete e ele tiveram cinco filhos. Delmira, Juca, Ataíde, Alcides e Melissa, nessa mesmíssima ordem. Teriam mais, não fosse o destino ter arrancado dele, e de forma trágica, a companheira. Chegados na cidade grande, ela se empregou mesmo antes que ele. Suzete, criada na lida do interior de Pernambuco, era mulher pra toda obra, e não ia recusar serviço. Depois, tinha uma carinha boa, gestos calmos, olhos brilhantes, cílios longos, curvados nas pontas. Parecia afagar, a cada piscar de olhos, os viézes do cotidiano. E quando se emocionava? Anjo disfarçando, enxugando as lágrimas com a pontinha dos dedos.

- A minha Suzete inspira confiança... dizia seu Otoniel, para o constrangimento dos patrões dela. No trabalho, Suzete corria pra todo lado. Fogão, tanque, arrumação, crianças que iam e voltavam da escola, uniforme, mesa posta. Do lado dos patrões, diziam que no dia do acontecido Suzete se descuidou com a penela de pressão. Queimaduras terriveis, trinta e nove dias de internação, respiração artificial, sofrimento nela e nos demais. Infecção hospitalar. Por fim, a notícia que ninguém queria: morte.

Seu Otoniel fez o que pode. Terminou de criar os filhos sozinho. Os dois mais velhos se revezavam entre a escola e o cuidado com a casa e com os irmãos. Com exceção de Melissa, que terminou o ginásio, todos largaram a escola precocemente. Juca e Ataíde pra trabalhar. Delmira porque engravidou e foi morar com um rapaz, até o dia em que ele sumiu no mundo e ela voltou pra casa com dois filhos. Depois se juntou com outro e foi morar em Salvador. Alcides não estudou porque nunca foi muito chegado a estudar. Dava trabalho que só! No fim, nem bandido, nem honesto. Alcides fazia o tipo malandro esperto. Vivia de bico. A vida traçou os seus meandros. O tempo voou, até que seu Otoniel, há muito aposentado, se viu na condição de ter que morar com um dos filhos. Que fique esclarecido: da aposentadoria nem o cartão do banco ele via! Coisa do Alcides.

Mais uma subida e alcançariam o semáforo da principal avenida local. “Suzete, Suzete, as crianças ainda pequenas... Trabalho de sol a sol. Cansaço do bom. As tardes de domingos, simple s,preguiçosas, festeiras. Salgueiro, no interior de Pernambuco, que nem luz elétrica conhecia, parecia vibrar. Tudo acontecia ao mesmo tempo. Música, dança, grito de criança, risada e conversa alta, misturados igual a leite com fruta, nesses aparelhos da cidade, os liquidificadores.”

- Vê se fica aí! Nada de ir pra outros semáforos. Às seis horas eu volto, ta? Otoniel fez que sorriu, mostrando que entendeu. Logo estendeu o chapéu. Os carros parando no semáforo... algumas moedas. “A casa era pintada de amarelo. No inverno lembrava um sol fincado no chão, no meio da chuva, bem ao alcance das mãos. O verde da plantação crescia do mesmo tanto que a alegria. Mas isso era quando Deus queria. De um lado, Ele, do outro a força da seca. Era preciso pensar nos filhos, no futuro deles, na educação... Onde foi que eu errei...?”

- Vai trabalhar!
- Olha, hoje não tem moedas, vovô! Fica para a próxima.
- Tudo bem aí? Alguns motoristas, muitos dos quais já familiarizados com seu Otoniel, cumprimentavam. Talvez entendessem aquela dor que encolhidinha por dentro devia vazar. Colocavam algum dinheiro no chapéu estendido de seu Otoniel, ao que ele agradecia sempre. Não naquele dia, consumido que estava.

Foi duro pra abandonar as terras, os parentes, os amigos, enfiar a cara no mundo desconhecido da cidade grande. Tudo pela família. Agora, andando com dificuldade, entre um e outro carro, ia feito liquidificador, misturando o presente e o passado. Quando chegasse em casa, o valor arrecadado que ele nem contava, ia direto para o filho. Os outros filhos também estavam casados, cuidando cada um da própria vida. Um ou outro aparecia de vez em quando no barraco. Queriam saber das coisas, até traziam mimos vez por outra, mas disfarçavam mal o alívio por não terem de cuidar dele. Como se não bastasse, nessas ocasiões ele estava proibido pelo Alcides de tocar no assunto “semáforo”.

“É... ainda outro dia o Alcides não voltou... e querem saber, foi bom! Eu fiquei aqui até escurecer. Deu nove horas e nada. Foi quando eu decidi voltar sozinho. Antes, de vingança, eu comprei com o dinheiro das esmolas uma caixa inteira das paçocas que o maltrapilho do outro semáforo vende. Ele disse que é sozinho na vida. Daí que na sorte a gente é muito do igual!”- E aí vovô, cuidado.

- O que deu nele...?

O seu Otoniel, por demais admirado, não ouvia nada. Podia jurar que o anjo de pedra, da catedral do outro lado da avenida, enxugava uma lágrima com a pontinha dos dedos. Ele pensava em Deus, nas alegrias, nas decepções, no tempo que passa rápido, na fragilidade entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Foi atravessando a avenida. “Estou como um liquidificador meio quebrado. Ah, que saudade da esperança que ficou lá no fundo, bem no passado." Uma freada tardia, seguida de um baque, levantou Otoniel bem acima da superfície. Então já era tarde, e tudo escureceu.

Cissa de Oliveira

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Raiva.



Com as costas apoiada na cabeceira da cama, observava o quarto. Pequeno, pouca mobília, a cama, o guarda-roupa embutido, o espelho e uma mesinha onde estava a televisão ligada num filme pornô.

Notou, estava tudo limpo, cheirando a higiene. Esticou o corpo e desligou a televisão. Aquilo já estava saturando a paciência.

Nisso a porta abriu e ela entrou. Loira, não muito alta, peito firme, cintura delicada, anca cheia, pernas lisas, torneadas, mas o que prendera sua atenção foram os olhos doces, de bondade expressiva, como se neles alojasse a calma precisa.

-Escuta. Você precisa ir agora.

-O que...?

Ela sentou ao lado dele passando a mão no seu cabelo preto.
Mesmo calma, sua voz lenta soou como pequeno estilhaço ferindo sua pele nua deixando-o melancólico e angustiado.

-Por favor, seja amigo como foi até agora e me entenda.

-Está bem. Mas você...

-Eu sei, eu sei. Da outra vez, eu prometo.

Ficou observando ele se vestir. Até que tinha um corpo bonito, cheio, bem proporcionado, tronco forte, ombros largos, e o que ela mais gostava, tinha os pelos nos lugares certos. Gostava dele, mas ele não podia saber.

-Olha, toma.

Sobressaltou-se. Distraída não percebeu que ele já estava vestido e lhe oferecia dinheiro.

-Não precisa pagar.

-Mas tomei seu tempo.

- Tudo bem, a gente mais conversou do que outra coisa.

E foi empurrando ele para fora do quarto. Ao passar pela sala, notou a silhueta de um homem.

-Não deixe de telefonar.

Falou segurando a porta meia aberta.

-Ok.

Já tinha dado uns dois passos quando se sentiu puxado e sua respiração sendo presa pelos lábios dela. Correspondeu sugando o prazer que lhe dava aquela boca. Ao mesmo tempo em que era beijado, sentiu a mão dela na braguilha apertando o pênis por cima da calça com certa força que sem perceber gritou.

-Sua safada.

Rindo ela entrou fechando a porta.

Deu meia volta e desceu as escadas. Do outro lado da calçada olhou para a janela do apartamento. Ela estava sendo abraçada por trás enquanto puxava a cortina. Deu um pontapé na lata de coca que voou longe.

-Droga! Como o mundo é cheio de armadilhas e o ser humano é uma merda.

Foi embora descendo a avenida em direção ao centro....

pastorelli

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

São Paulo - uma cidade encantada

Angélica T. Almstadter

Desvairada quatrocentona
que se ergue majestosa
nas construções seculares
bem como se encharca
pelos túneis e avenidas;
assombrando pela beleza
e ao mesmo tempo
pela fúria da natureza.

Aconchegante metrópole
velha e ainda deslumbrante
que tem um povo trabalhador
hospitaleiro e baladeiro.
Cativa seu turista e visitante
em cada beco de cultura
em cada palmo do seu chão
coalhado de atrações.
Amedronta seus passantes
pela imensidão de concreto
que se estende a céu aberto
e ao longo de intermináveis avenidas.

Bela quase qüinqüentona
que mesmo maltratada
segue imponente
até depois de um verão de dilúvios;
basta que o sol se apresente luminoso
e seu povo  se esquece das avarias,
das perdas e das suas dores mais fundas
para se apresentarem sóbrias,
bem vestidas indo e vindo pelas ruas e trilhos.

Não há chão mais sagrado
que o que nascemos ou vivemos.
Sofremos, choramos,
mas fincado a eles como raízes
florimos todos os dias
para que o mundo veja
a beleza que ofertamos
a quem nos visita e soma forças.

Cidade cinza de coloridos tantos
Enfeita-se de luzes e sons
para agigantar prazeres
dos seus transeuntes.
Proteje seus artistas,
abre os braços para o mundo.
Sua a camisa, estufa redes,
cria e exporta moda.
Generosa metrópole que não dorme
fala muitas línguas,
dança com todas as tribos,
e se acaba no Sambródomo
em plena quarta-feira de cinzas.

Bem-amada selva multi-racial
dos senões e dos desejos tolos;
um brinde a sua elegância
pouco entendida pelos recém chegados.
Um brinde a sua alma doce e tenaz
ao seu abraço carinhoso.
Muitos versos ainda faria e nem assim
cantaria sua atuante beleza;
fecho os olhos e emano energias,
num desejo sincero de Felicidades tantas
a você e sua brava gente.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Egoísta eu?

Angélica T. Almstadter




Eu dependo de mim
porque sou de mim
pai, mãe e inteira
descendência de Eva.
Sou de mim o alvo
começo e o fim
apoteose da vida.

 
Tenho em mim
a semente benfazeja
a energia vital,
o dom sobrenatural,
o sangue da realeza.

 
Eu me contenho
e me basto
em um único cálice.
Sou anjo doce,
criação original
esculpida no ápice.

 
Onde estiver serei
primeira e única,
de mim e para mim
exalando a essência
da melhor existência.

 
Meu diário: a franqueza
sem motivos,
sem objetivos
para o augúrio
de alguma beleza.

 
Cultivo o desprezo
por ser herdeira hilária
do cenário patético
do meu imaginário. 

domingo, 16 de janeiro de 2011

Uma peça em quatros atos.

Primeiro ato.

Reluzente nos trazes finos, com orgulho ostentava im­ponência toda empertigada, ereta, sentada no banco traseiro do carro. Sua posi­ção social dizia para não perder a pose, manter a ostentação sem se desleixar.
Amendoados os olhos olhavam pela pequena ja­nela. Não prestava muita atenção. Conhecia por onde passavam. Fazia sempre esse percurso, quase todo dia. O semblante passivo não dei­xava os músculos se mexerem.
Não se preocupava James competente, dirigia com mão firme sem sair do itine­rário. Confiante, lentamente James virou à esquerda, subindo devagar a avenida dois. No meio do quarteirão, di­minui a marcha, acendeu o pisca-pisca e encostou o carro em frente à loja. James puxou o freio de mão, desligou o motor, desceu passando pela frente do veículo e abriu a porta para a patroa que esperava vendo os movimentos do chofer.
James abriu a porta e respeitoso segurando a maçaneta, ajudou a pa­troa a descer. Devagar, apreciando cada gesto, se excitava saboreando a sensação que causava. A fim de aumentar o impacto, parou no meio da calçada olhando para os lados, e num mo­vimento provocante, eró­tico, com a mão livre, a outra segurava a bolsa, passou a mão no ves­tido justo tentando alisar o amassado por ter es­tado tanto tempo sen­tada.
Ao mudar o passo levando a mão procurando algo para se equili­brar, caiu. Tinha quebrado a perna direita, o palito se partira. Gina olhou em volta. Ah! Aqui está, achei, esse servira, disse trocando o palito que­brado pelo novo que fazia de perna para a boneca. Pronto, continuemos.
James sacudiu a cabeça demonstrando descon­tentamento. A pa­troa mancava! A perna direita estava um pouco maior, diferença pequena, porém sem perder a pose, mancando ela entrou na loja. Encos­tado no carro, James observava. Lamentava a patroa não merecia isso, que decepção, pensou. Em fim o que poderia fazer além de servir, nada mais.
Nisso a patroa saia da loja acompanhada por um funcionário sobrecarregado de pacotes. Prestativo James pegou os em­brulhos e colocou no porta mala, depois abriu a porta dizendo:
- Sinto muito senhora.
- Obrigada James, vamos embora estou cansada.
- Des­culpe senhora se me permite.
- O que?
- Desculpe senhora não vai ser possível não agora.
- Porque James?
- A senhora não ouve?
- Ouvir o que, James?
- Ouça es­tão chamando à senhora.
- O que?
Ergueu a cabeça, re­almente, ouviu seu nome sendo chamado.
- Ah! Justo agora!
Colocou a boneca manqui­tola no chão.
- James, por favor, não saía daí, vou ver o que mamãe quer e já volto.

Segundo ato.

Na sala estavam três mulheres.
A mãe, a tia, cunhada da sua mãe, e a vó.
- Bença vó, bença tia.
Cumprimentou educadamente.
- Deus te abençoe, responderam as duas quase ao mesmo tempo.
- Ah! Gina venha aqui, disse a mãe. Por favor, vá até a casa da tia buscar carvão em brasa para a vó fazer defumação.
- Fale para sua prima escolher os que estiverem bem vermelhos, disse a tia.
- Cuidado para não se queimar, falou a vó.
-Olhe bem antes de atravessar a rua, recomendou a mãe.
Ao abrir a porta, Gina sentiu o sol. Tapando os olhos com a mão, olhou o céu claro. As nuvens brancas estavam bonitas, gostava de ficar deitado no quintal vendo as formas que as nuvens cria­vam.
Bem lá vou eu, pen­sou, em mais uma missão. Pena não ter trazido James para me fazer companhia.

Terceiro ato

Ao encostar a xícara nos lábios, começava a se preocupar.
- A Gina está demorando, disse a mãe.
- Não se preocupe logo ela estará de volta, falou a vó.
- Daqui a pouco ela chega, falou a cunhada.
Nisso ouviram a porta abrir e fechar.
- Ela chegou, disse a mãe se levantando.
Instantes depois estava a frente delas a menina, pálida, tremendo, chorando. Assustadas as três mulheres ajoelharam ao redor de Gina.
- O que foi, disse a mãe.
O que aconteceu, falou a vó.
- Você se machucou, perguntou a tia.
Gina não conseguia falar. Deram um copo d’ água com açúcar. A mãe colocou a menina no colo. Com muito custo conseguiu contar.
A prima pegara umas quatro brasas e enrolara no jor­nal dizendo:
- Olha, se o jornal começar a queimar, volte aqui que te darei mais jornal.
E quando ela atravessava o Jardim da Boa Morte, o jornal pegou fogo. Assustada jogou longe as brasas e o jornal incendiado, e viera cor­rendo. As três mulheres olharam para Gina, uma para a outra, e caíram na gar­galhada.
A menina coitada chorava. Assim Gina ganhou por mui­tos anos o apelido de Maria da Brasa, tudo por causa da prima.

Quarto ato.

Gina fechou o caderno.
Sorriu vendo sua imagem no espelho do quarto. Então o irmão com a mania besta de escritor, escrevera esse conto sobre o que lhe acontecera há.... Quanto tempo? Uns quarenta anos mais ou menos, ela nem se lembrava mais.
Me­xendo nas tranquei­ras descobrira o caderno. Na época dera uma bronca no irmão. Era o seu segredo sendo revelado. Ficou quase uns dois me­ses sem falar com ele. Também quem mandou escrever. Tudo porque, os filhos, os netos, as noras, até o marido tiraram um sarro da cara dela avivando o esquecido apelido.
Agora sentia que fora injusta com o irmão. Essa ma­nia besta de escrever! Nisso ouviu vozes. Chamavam por ela. Pegou o caderno e desceu. Eram os netos. Nossa estavam grandes!
- Olá, vó? Onde estão os velhos, perguntou o mais moço.
- Foram na casa do seu pai, respondeu Gina.
- Vamos lá então pessoal.
Quando iam saindo a neta mais velha se voltou perguntando,
- Vó a senhora estava chorando?
- Não, respondeu rápida escondendo o caderno. Vá, vá com os outros, disse empurrando a neta porta fora.
Assim que o silêncio voltou a reinar, desceu até a garagem. Rasgou folha por folha, riscou um fósforo e queimou o caderno.
Estou queimando o passado, pensou. Não foi ele que disse: temos que enterrar o passado. Depois que o último pedaço tinha sido queimado, saiu fechando a porta.

pastorelli