quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Anjo de Pedra




Cissa de Oliveira

“Sabe lá o que é passar mais de oitenta anos sendo lembrado de forma humilhante sobre alguma coisa que você nem ao menos precisa esquecer? Por aí você vê que ter nascido preto foi o meu primeiro karma. Não, azar, que karma é palavra que preto do meu naipe não conhece; ou porque não conhece mesmo ou porque pensam que a gente é burro, por fora de tudo, sem percepção. Se a gente deixa, vai ficando o dito pelo não dito, o pensado pelo não pensando e por aí à fora. O segundo karma foi ter nascido pobre. O terceiro: continuar pobre, mesmo aposentado, e pior, dependente de filho”

Naquele dia Otoniel tinha acordado com a revolta da vida toda. Pior, revolta calada, daquela que mói por dentro sem fazer barulho, até deixar o sujeito uma casquinha assim, de nada. Casquinha fiiiina, curvada de tudo; qualquer coisa quebra, de atropelamento a ingratidão de filho.

- Já ta pronto?
Otoniel, calado estava, calado ficou. Ara!
- Coloca o cinto, pai... Não ta vendo que a calça ta caindo?

Otoniel abotoou o cinto num dos quatro furos que ele mesmo foi acrescentando desde que foi morar na casa do flho. Um a cada ano, mais ou menos. A ponta do cinto pendia. Era um tanto de tira de couro, fina, meio molenga, tão molenga que não se segurava nos passantes do cós da calça preta. Ele se arrumava bem devagar, o que irritava o filho.

Logo na porta, ao sairem, o vento encheu a camisa clara de seu Otoniel, um dos seis moradores do barraco número 528 do Parque Esplendor. Nem o nome bonito consertava a realidade do lugar. Seu Otoniel seguia meio curvado. Os pés descalços das crianças, pra lá e pra cá, atrapalhando a passagem pelas vielas estreitas. Vez em quando ouvia uma saudação, intuia um olhar, alguma profunda consternação. Não era pela pobreza não, que isso era coisa que ali não faltava. É que os vizinhos sabiam...
Venceram o aglomerado de minúsculas casas. Do outro lado, o muro pintado de vermelho, o portão grande e os carros de bombeiros.
- A civilização ...
- Nós também somos civilização!
- É mesmo? Resmungou Otoniel, colocando o chapéu de palha sobre a cabeça coberta de fios brancos.

Caminharam por cerca de quinze minutos. Seu Otoniel com dificuldade, Alcides, o filho, com impaciência. Atravessaram a passarela e logo seguiam pelo asfalto da rua paralela à rodovia. Os portões altos das casas mostravam bem a preocupação da vizinhança para com o Parque Esplendor. Ah, que aquilo incomodava seu Otoniel tanto quanto o sol daquele dia, por mais que o vento arejasse por dentro da camisa dele, com um movimento que mais parecia brincadeira. Brincadeira de criança.

Suzete e ele tiveram cinco filhos. Delmira, Juca, Ataíde, Alcides e Melissa, nessa mesmíssima ordem. Teriam mais, não fosse o destino ter arrancado dele, e de forma trágica, a companheira. Chegados na cidade grande, ela se empregou mesmo antes que ele. Suzete, criada na lida do interior de Pernambuco, era mulher pra toda obra, e não ia recusar serviço. Depois, tinha uma carinha boa, gestos calmos, olhos brilhantes, cílios longos, curvados nas pontas. Parecia afagar, a cada piscar de olhos, os viézes do cotidiano. E quando se emocionava? Anjo disfarçando, enxugando as lágrimas com a pontinha dos dedos.

- A minha Suzete inspira confiança... dizia seu Otoniel, para o constrangimento dos patrões dela. No trabalho, Suzete corria pra todo lado. Fogão, tanque, arrumação, crianças que iam e voltavam da escola, uniforme, mesa posta. Do lado dos patrões, diziam que no dia do acontecido Suzete se descuidou com a penela de pressão. Queimaduras terriveis, trinta e nove dias de internação, respiração artificial, sofrimento nela e nos demais. Infecção hospitalar. Por fim, a notícia que ninguém queria: morte.

Seu Otoniel fez o que pode. Terminou de criar os filhos sozinho. Os dois mais velhos se revezavam entre a escola e o cuidado com a casa e com os irmãos. Com exceção de Melissa, que terminou o ginásio, todos largaram a escola precocemente. Juca e Ataíde pra trabalhar. Delmira porque engravidou e foi morar com um rapaz, até o dia em que ele sumiu no mundo e ela voltou pra casa com dois filhos. Depois se juntou com outro e foi morar em Salvador. Alcides não estudou porque nunca foi muito chegado a estudar. Dava trabalho que só! No fim, nem bandido, nem honesto. Alcides fazia o tipo malandro esperto. Vivia de bico. A vida traçou os seus meandros. O tempo voou, até que seu Otoniel, há muito aposentado, se viu na condição de ter que morar com um dos filhos. Que fique esclarecido: da aposentadoria nem o cartão do banco ele via! Coisa do Alcides.

Mais uma subida e alcançariam o semáforo da principal avenida local. “Suzete, Suzete, as crianças ainda pequenas... Trabalho de sol a sol. Cansaço do bom. As tardes de domingos, simple s,preguiçosas, festeiras. Salgueiro, no interior de Pernambuco, que nem luz elétrica conhecia, parecia vibrar. Tudo acontecia ao mesmo tempo. Música, dança, grito de criança, risada e conversa alta, misturados igual a leite com fruta, nesses aparelhos da cidade, os liquidificadores.”

- Vê se fica aí! Nada de ir pra outros semáforos. Às seis horas eu volto, ta? Otoniel fez que sorriu, mostrando que entendeu. Logo estendeu o chapéu. Os carros parando no semáforo... algumas moedas. “A casa era pintada de amarelo. No inverno lembrava um sol fincado no chão, no meio da chuva, bem ao alcance das mãos. O verde da plantação crescia do mesmo tanto que a alegria. Mas isso era quando Deus queria. De um lado, Ele, do outro a força da seca. Era preciso pensar nos filhos, no futuro deles, na educação... Onde foi que eu errei...?”

- Vai trabalhar!
- Olha, hoje não tem moedas, vovô! Fica para a próxima.
- Tudo bem aí? Alguns motoristas, muitos dos quais já familiarizados com seu Otoniel, cumprimentavam. Talvez entendessem aquela dor que encolhidinha por dentro devia vazar. Colocavam algum dinheiro no chapéu estendido de seu Otoniel, ao que ele agradecia sempre. Não naquele dia, consumido que estava.

Foi duro pra abandonar as terras, os parentes, os amigos, enfiar a cara no mundo desconhecido da cidade grande. Tudo pela família. Agora, andando com dificuldade, entre um e outro carro, ia feito liquidificador, misturando o presente e o passado. Quando chegasse em casa, o valor arrecadado que ele nem contava, ia direto para o filho. Os outros filhos também estavam casados, cuidando cada um da própria vida. Um ou outro aparecia de vez em quando no barraco. Queriam saber das coisas, até traziam mimos vez por outra, mas disfarçavam mal o alívio por não terem de cuidar dele. Como se não bastasse, nessas ocasiões ele estava proibido pelo Alcides de tocar no assunto “semáforo”.

“É... ainda outro dia o Alcides não voltou... e querem saber, foi bom! Eu fiquei aqui até escurecer. Deu nove horas e nada. Foi quando eu decidi voltar sozinho. Antes, de vingança, eu comprei com o dinheiro das esmolas uma caixa inteira das paçocas que o maltrapilho do outro semáforo vende. Ele disse que é sozinho na vida. Daí que na sorte a gente é muito do igual!”- E aí vovô, cuidado.

- O que deu nele...?

O seu Otoniel, por demais admirado, não ouvia nada. Podia jurar que o anjo de pedra, da catedral do outro lado da avenida, enxugava uma lágrima com a pontinha dos dedos. Ele pensava em Deus, nas alegrias, nas decepções, no tempo que passa rápido, na fragilidade entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Foi atravessando a avenida. “Estou como um liquidificador meio quebrado. Ah, que saudade da esperança que ficou lá no fundo, bem no passado." Uma freada tardia, seguida de um baque, levantou Otoniel bem acima da superfície. Então já era tarde, e tudo escureceu.

Cissa de Oliveira

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita. Esperamos que volte