segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ludo.


Decidirá logo de manhã enquanto tomava o café.

Não deixaria mais os fantasmas se alimentarem das lembranças coladas nos objetos que ao longo dos anos foram se amontoando.

Assim, com determinação estava a remexer nos esquecidos empoeirados cheirando a mofo. Mexendo aqui, retirando um objeto dali, foi sendo invadida por uma onda de sensação envolvendo sua alma que, extática, deixou-se levar.

Era mais ou menos como uma ferida aberta que a saudade abria levando-a pela surpresa, as forças tomaram outro alento, e como renovada, foi empilhando o que deveria ser jogado fora.

De repente escutou um som. Pareciam dados caindo em cima de madeira. O que seria? Procurou. Era um som imperceptível. Mas agora, estava mais nítido, mais alto, mais próximo. Sorriu. Que bobagem pensar nessas coisas! Sua imaginação cheia de filmes... que bobagem. Fez um gesto como se dissesse: Isso é idiotice.

Continuou com o serviço. Nisso seus olhos pousou no tabuleiro encostado a parede. Era dali que vinha o barulho de dados. Sim! Era dali. Dava para ouvir com nitidez os dados correndo pelo tabuleiro. Pegou o tabuleiro e colocou em cima de um caixote que estava perto. Não tinha mais dúvidas. O som que ouvia era dali. Olhou para os lados. Onde estavam as pedras. Revirou as coisas. Ah! Aqui estão.

Ajoelhou-se em frente ao caixote. Foi colocando as pedras, uma por uma em suas respectivas casas. As amarelas, as vermelhas, as pretas e as azuis, cada cor com quatro pedras. Quando colocou a última pedra no tabuleiro com desenhos gastos, deixando aparecer o rústico da madeira, ouviu alguém chegando. Foi ver quem era.

- Ah! O que houve tio? O senhor não era para...

- Sim... era... mas...

- O que aconteceu, tio?

- O seu filho...

- O que tem ele?

- Está na Santa Casa.

- Na Santa Casa? Aí minha Nossa Senhora...

- Calma, não aconteceu nada.

- Como não aconteceu nada se ele está na Santa Casa?

- Ele quebrou só a perna. Já estão trazendo ele para cá. Arruma a cama que ele vai ficar um bom par de tempos deitado sem se mexer.

Dito e feito. Quando ela aflita chegou no corredor, vinham trazendo o filho todo refestelado como se nada tivesse acontecido, numa cama de hospital. Junto estavam os primos, os irmãos, o pai, os enfermeiros, todos falando ao mesmo tempo para uma mãe assustada. Ao ver todo aquele alvoroço começou a chorar.

- Que é isso, mulher? Larga de ser boba, não vê que nosso filho está bem; disse o pai abraçando a esposa.

Arrumaram a cama onde ele ia ficar os três meses deitados. Pouco tempo depois à engrenagem rodava de novo nos eixos.
Passados dois dias, o cunhado chega entrando no quarto.

- Olha o que eu fiz, diz.

E coloca o tabuleiro no colo do sobrinho. E daquele dia em diante a casa não teve mais sossego. Tinha sempre alguém jogando Bodum com ele. Durante os três meses, só se ouvia risadas, torcidas, palavrões, gritos e o barulho dos dados rolando no tabuleiro de madeira.

- De quem é a vez?

- É a sua.

- Não, é a minha.

- Não rouba seu ladrão!

- Não deixem a vermelha entrar.

- Aí, viva! Pensa que vai ganhar?

E assim era, quando não eram os irmãos, eram os primos, os tios, as tias, sempre que chegavam corriam lá para o quarto do enfermo.

- E aí, vamos jogar?

Às vezes as jogadas demoravam em acabar, chegando a avançar a noite adentro. Assim foram os três meses. O tabuleiro ficou gasto. Os quadriculados sumiram. De tanto baterem o copinho em cima e arrastarem as redondas pedras de madeira as cores sumiram.

Aqui é a vermelha. Ali as pretas. Amarela no outro canto ao lado da azul. Já sabia de cor a colocação das pedras. Passou os dedos contornando cada linha, cada casa, cada quadrado, ouvindo as vozes, as risadas...

Uma lágrima deslizou caindo bem no meio do tabuleiro.

Ela se levantou. Da porta olhou para o interior, depois para o tabuleiro e viu todos eles, um por um, ali em volta jogando Bodum.

- Não vou... talvez outro dia eu continuo com a limpeza.

Saiu fechando a porta e passando a mão nos olhos.

As vozes, o barulho dos dados, as risadas, os gritos de ganhei, ainda continuaram por um longo tempo.

Pastorelli

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Bocejo - odete ronchi baltazar

 
Bocejo
 
odete ronchi baltazar
 
É pela manhã
que sinto a tua falta...
É quando acordo e
espalho a preguiça entre os lençóis,
quando me viro e não te vejo
que sinto a falta dos meus sóis
perdidos em teu olhar.
 
Falta-me o côncavo do teu corpo
que eu preencho com
ternura, pernas, braços e pés.
Falta-me o teu resmungar rouco,
o teu cabelo revirado,
falta o teu bocejo (nada) poético,
falta a tua roupa largada de qualquer jeito,
falta a tua displicência na hora de amar.
 
Que posso fazer?
Levanto-me,
visto-me com a tua ausência,
calço chinelos
 e espanto o sonho que não quer acordar.
Lavo depressa na torneira a minha decepção.
O dia começou mais uma vez.
Deixemos de lado a emoção.
 
odeteronchibaltazar

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

olhos de ressaca

angélica t. almstadter
 
mataram meu humor
na curva de uma palavra
o riso ficou pendurado
num canto sem graça da boca
 
minha voz foi encoberta
pelo som dos silêncios
entreolhados cúmplices
 
meus olhos pensos
soluçaram de dor
e não mais sairam
do porta-retratos da sala

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Intimidade com a morte.


O estômago roncava. Sentia uma sensação esquisita. Deveria ser o café que tomara as pressas antes de vir para cá, pensou. Precisava ficar andando de um lado para outro para aliviar um pouco a sensação. Olhou o relógio, três horas da madrugada. Faltava muito tempo ainda. Também porque fora marcar para tão tarde? Na esperança de vir alguém? Seus parentes e amigos eram aqueles que estavam ali. O frio gelava a carne cansada. Ainda bem que não ventava. Nada se extingue, o fim é o princípio. Será verdade? Realmente se for fazer uma análise rigorosa nada se extingue, há sempre uma transformação moldando as coisas. A morte é uma transição da matéria onde à vida escapa por entre osdedos dos sentimentos. Nego a morte para tentar chegar além do esquecimento.Nisso o carro fúnebre entrou de ré no acostamento. Mais um que chegava para a sua derradeira viagem.
Os funcionários retiraram um caixão grande, bonito, bem envernizado. Todos comentaram o tamanho do caixão. E o pessoal que o acompanhavam, a maioria estavam vestido de branco.Será pai de santo? Ou uma mãe de santo. Não deu atenção, seguiu para o outro lado, tentando espantar o frio.
Andou até chegar no fim do corredor. Ficou longo tempo parado com os olhos mortiços de sono contemplando seu vulto refletido no sujo vidro da porta. Não se reconhecia, ou melhor, se reconhecia, mas certa dificuldade lhe dizia que o que via era apenas uma fútil imagem dele mesmo.
Imagem falsa de um ser que desejava estar longe dali. Não era ele, e, no entanto, se virou ao ouvir que alguém se aproximava. Que droga, não podia pelo menos ficar um pouco sozinho com seus próprios pensamentos? Aliviado suspirou ao notar o ruído sumindo na distância daquelas paredes. Abriu a porta e saiu para a madrugada fria. O ar o reanimou um pouco. Deu uma volta pelo prédio velho da prefeitura. Parou em frente à placa. Aquele edifício fora inaugurado por então prefeito Jânio da Silva Quadros. Já era a terceira vez que lia a placa. Voltou a sentar no banco perto da porta.
Estava evitando entrar e ver sua mãe no caixão. Não queria ver, não gostava, tinha a impressão que aquela seria à última imagem dela que ficaria gravada na sua mente. Lembrou de uma história que sua mãe vivia sempre contando. E que ultimamente, sempre que se começava a falar em velório, sua irmã contava. O tio Antônio, casado com uma irmã do seu pai, falecera, estava sendo velado em casa.
Naquele tempo era raro um defunto ser velado no cemitério. Ele não queria ir, mas como ordem de pai é ordem, foi obrigado a ir. O tempo todo ficou na calçada, nem tinha coragem para entrar e cumprimentar a tia e os primos, por não querer ver o caixão. E aos poucos, aproximava, criando coragem para entrar, e no instante em que estava na porta, transpondo a soleira, de imprevisto uma mulher apareceu gritando atrás de dele: - Aí, o que fizeram com o meu querido irmãozinho. Você não podia morrer, gosto de você. Levado pelo susto, foi empurrando para dentro da sala, quase derrubando o caixão e dando de cara com a cara cadavérica do tio. Ele já era magro, careca, sem dentes, e deitado no caixão envolto em flores, estava pior que a cara do Michael Jackson. Ele começou tremer, a suar, sem saber o que fazer sendo empurrando pela mulher que não parava de gritar, estava quase desmaiando. A mãe vendo a aflição do filho puxou o coitado tirando ele dali. Levou para a cozinha e deu um copo de água.
Ele não voltou mais para a sala, mais tarde foi levado para casa.
Que ele se lembre esse foi o seu primeiro encontro ou que teve a sua primeira intimidade com a morte. Isto é, que teve uma noção do que era a morte. Das outras vezes fora sempre alguém distante ou vizinho, com o falecimento do cunhado do seu pai poderia dizer que foi a primeira vez que viu a morte próxima dele. Quando os agentes funerários chegaram, ele se distanciou, não quis presenciar o momento da tirada do corpo da mãe da cama e ser colocada no caixão. E grato ficou ao saber que não precisava acompanhar o motorista no carro fúnebre. No enterro do pai, não lembra porque motivo teve que ir junto com o motorista até o cemitério. O pai fora velado em casa, talvez seja por isso. Certos instantes da vida ficam nítidos na mente esperando apenas o momento para vir à tona. É pensamentos que o faz seguir cada passagem da vida sendo ou não necessária. E os pensamentos ora em forma de palavras, ora em forma de cenas quase cinematográficas ajudava a passar o tempo. No início da doença da mãe perguntava freqüentemente o porquê disso ou o porquê daquilo, não se conformava com a situação caminhando daquela maneira, de um jeito que o sentir se tornasse descontrolado, chegando às vezes a perder a paciência. Sentiu a azia aumentar, queimar trazendo o gosto do café na boca. Pensou ir ao banheiro e vomitar, desistiu, não tinha coragem de enfiar o dedo na garganta e provocar o vomito. Foi até a lanchonete, talvez tomando alguma coisa passasse a azia. Pediu uma cerveja e um lanche. Tomava e comia calmamente se despreocupando um pouco com o que se passava a sua volta. Pessoas que vinham e saiam a todo o momento dentro daquele silencio que era o prantear da morte, figura indesejada e que volta e meia aparecia, ou melhor, que sempre esta ao nosso lado, a gente que não a percebe. Riu ao pensar nisso. Tudo isso eram apenas palavras que se juntando a outras formavam o sentir concreto da vida. Era apenas preciso coragem para pronunciá-las. Ele não tinha e nunca tivera essa coragem, essa audácia de expressar o seu sentir em palavras que soassem concretamente a vida, tanto a vida real como a vida irreal. Aliás, chegou à conclusão que sempre vivera com palavras que concretizavam a vida irreal que até aquele momento. Talvez se ele tivesse concretizado mais as palavras em sons e não em pensamentos, pudesse sua vida ter sido outra, diferente, mais dinâmica. Um exemplo disso estava no dia em que sua avó morrera.
Não lembrava exatamente do falecimento da avó. Não saberia dizer se já estava morando em São Paulo. E muito menos o detalhe do velório, do enterro, quem estava e quem não estava. Recordava-se de uma cena apenas: da mãe chorando. Estavam numa sala e, sentada na poltrona, sua mãe chorava. Ficou longo tempo observando o choro descontrolado da mãe sem dizer uma palavra. Uma palavra que pudesse amenizar o sofrimento materno. Descobriu que ao ser pressionado não sabia agir ou o que dizer. A avó apesar de ter sido pessoa boa não poderia afirmar que gostava dela imensamente para chorar sua morte. Sentia é claro, mas não era um sentimento insuportável que o tempo aos poucos amenizaria. Esse sentimento bem antes da morte da avó já estava amenizado, o que não conseguiria fazer sua mãe entender. Sentia e até entendia o sofrimento da mãe e dos outros, o que não entendia e, muito menos teria que explicar era o seu sentimento. As fibras da sua mente sofriam e choravam a morte da avó, patético choro e maneira de expressar a dor. Dor que ele guardava apenas para si ao invés de expressá-la, de carinhosamente reconfortar mostrando seu amor para a avó e para com a mãe. No entanto preferiu ficar ali impassível, frio, sem dizer nada, apenas vendo ridiculamente o choro dos outros. Talvez, seu íntimo quisesse ou sentisse menos oprimido, mas quem garantiria que era isso?
São coisas e sentimentos que muito tempo depois lhe é revelados. Assim tem que ser, não pode ser de outra maneira. Terminou de tomar a cerveja e comer o lanche. O dia já estava amanhecendo, mas o sol ainda não tinha aparecido. Continuou perambulando de um lado para o outro. O pessoal que passara a noite toda estava uns aqui conversando outros sentados nas cadeiras cochilando. Já sabia antecipadamente que não viriam todos que imaginara deveriam vir. Nesse momento desejou ter antecipado a hora do enterro. Como tinha marcado para a última hora, teria que esperar até o momento final. A sua mãe seria a penúltima a ser enterrada. Até o presente momento já saíram quase todos os que junto com ela chegaram, ou depois dela. Nisso lhe perguntaram se seguraria a alça do caixão.
Respondeu que não, não queria nem chegar perto. Não sentia o peito oprimido, e muito menos leve como deveria ser depois de uma longa opressão emotiva. E mais uma vez descobriu que já passara por isso, por momentos como aquele e com o mesmo grau de sentimento. Começaram o terço e as vozes se elevaram num grau de tonalidade só. De repente, como começou, a reza tinha terminado. O funcionário da prefeitura chegou perto dele e perguntou se fora ele que tinha assinados os papéis. E diante da sua resposta positiva o funcionário disse que os familiares é que tinham que fechar o caixão e levar até o carro fúnebre, que fizesse isso logo para não atrasar, pois tinha ainda outros enterros para fazer e não podia ficar esperando. Diante disso não tendo alternativa, teve que entrar no velório eajudar o pessoal a fechar o caixão. Evitou olhar o rosto da mãe. Sentia o corpo queimar, o rosto vermelho, pois sabia que todos o olhavam seus movimentos, sua expressão. Durante o trajeto procurou puxar conversa com o motorista para fugir de ter o que pensar. Parando a certa distância da cova, retiraram o caixão e passaram para as mãos dos coveiros. Reinava um silencio suave, sem vento, um sol não muito quente. Logo que a última pá de terra foi jogada e os coveiros deram o serviço por terminado, despediu-se dos poucos parentes e amigos, entrou no carro e foi embora. Mais uma etapa da sua vida estava encerrada ali naquele monte de terra que cobria sua mãe.

Pastorelli

sábado, 13 de novembro de 2010

Out

Angélica T. Almstadter
 
Chic é ousar ser
é não negar o tesão,
muitos nãos
elevam a auto estima.
 
Estar on as vezes
é muito vazio;
Estar out
é uma sacada
pra grandes vôos.
 
A solidão é off
a alegria está out;
um clic e se acende.
 
Mas chic mesmo
é saber ser out
curtir a solidão
gostar muito de ser
beber o vazio
e voar com alegria.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

os mil tons e sons da solidão



angélica t. almstadter


acenando ao vento se afasta,
já fora do alcance dos sons,
sua obtusa lembrança gasta
na trilha matizes em mil tons


a rede rompeu laços tantos
é hora de navegar a solidão
espraiar em outros recantos,
com fúria, sua autêntica ilusão


sem traves, obstáculos ou afins
sobre os próprios passos
poder calçar solfejos de serafins


um brinde borbulha na taça
a palavra se sujeita a míngua
de qualquer língua em ameaça

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Descobertas.


Estavam calados. Um de frente para o outro. E entre eles a toalha tendo em cima a guloseima que trouxeram. O sol brilhava numa meia-luz projetando claridade plácida que a sombra da frondosa árvore proporcionava. Cláudio sentia a morosidade do momento a se deslumbrar no horizonte de suas vidas. Tinha o olhar concentrado no que fazia. Era esse seu jeito, sua característica a lhe dar requinte juvenil. Sandro por sua vez, trazia no olhar o brilho perdido na distancia que ultrapassava aquele momento sereno, as vezes apático, corriqueiro, mas de raro fluir de sentimentos. Pensou em registrar algum som com sua voz de barítono, mas desistiu. Não tinha competência para explicar o que se passava no pensamento. E também não sabia se valia à pena, pois Cláudio talvez não estivesse interessado. É idiotice pensar em falar e ficar quieto.
- Idiota! - pensou.
Cláudio continuava com a atenção voltada ao que fazia. Comia um pedaço de pizza e bebia coca, isto é, entornava boca adentro o que restara da comida. Ao ver a esfomeação do amigo, uma pequena, mas nítida náusea subiu de suas entranhas, que foi preciso tapar a boca com a mão na tentativa de abafar o arroto. Impossível. No olhar mudo e no gesto silente, Sandro entendeu como desculpa, mas o brilho dos olhos de Cláudio o traíram. Aquela cena revoltava seu estômago. A gula do amigo ofendia o requinte do instante cálido em que estavam. Surpreendido ficou com a justa raiva notada nos sulcos da testa que surgiram. Sandro notara todo o incrédulo ato de nojo que Cláudio tentou esconder em vão.
- Ora! Não posso mais comer?
Gritou o seu sentimento ofendido. Cláudio quieto, não respondeu. Via na pergunta do amigo, irritação provocativa. Continuou a arrancar pequenos pedaços de grama. De viés olhou a raiva de Sandro.
- Bobo! - pensou.
Um sorriso sereno, de leve contraiu seus lábios finos. Não podia acreditar que Sandro estivesse realmente bronqueado com ele. Pensando em quebrar o gelo que entre eles se formara, pegou um punhado de grama e jogou no rosto de Sandro. Sandro ao ver a grama cair sobre sua cabeça, rilhou os dentes e praguejou:
- Filho da puta! - e ao mesmo tempo jogou o conteúdo do copo em Cláudio.
- Seu veado!
Depois dessa troca de amenidades, se engalfinharam num corpo a corpo. Primeiro Cláudio pulou em cima de Sandro não dando chance a ele de se safar. Rolaram esparramando tudo o que estava na toalha, copos, garrafas, comida, pizza. Num gesto brusco Sandro conseguiu empurrar o amigo que caiu batendo as costas. Ao pensar ligeiro, Cláudio com os pés na barriga do amigo lançou o corpo franzino longe. Novamente ele estava por cima, tentando esmurrar a cara de Sandro, que procurava aparar os golpes. Num dado momento, sem que conseguissem explicar, talvez por ter girado o corpo, Cláudio perdeu o equilíbrio e quando perceberam suas bocas de leve se tocaram.No mesmo instante, petrificados como se o olhar da Medusa os atingisse, ficaram. Minutos pequenos não se ouvia nem a respiração de nenhum dos dois. O olhar duro um no outro gelava as entranhas. Ao mesmo tempo fizeram uma careta de nojo.
-Argh! - fez Sandro.
-Argh! - retrucou Cláudio
E rapidamente se separaram. Um bem longe do outro. Sentiam a perturbação do inesperado a arder por dentro. Sandro conseguia ver a queimação lavrada num ardor intenso em seu rosto. Não decifrava o acontecido. E principalmente porque se revoltara ao sentir os lábios do outro tocando o seu. Fora um acidente. Cláudio tenso segurava os nervos que tremiam por baixo da pele. Sua raiva extravasava o limite da razão. Com a feição endurecida queria ver o amigo longe. Que a terra se abrisse e engolisse Sandro. E assim ficaram. Sentados. Sujos de comida e bebida e terra. Quietos. Só ouvindo o tempo correr no espaço. Aos poucos Sandro se permitia sorrir ao lembrar da cena. Cláudio ainda meio tenso, perguntou:
-Ta sorrindo do que, seu bobo?
-Da sua cara de macho ofendido.
-Vá encher o saco do outro. Vamos é arrumar as coisas.
- Ta certo, Sandro continuava rindo.
Cláudio por fim se rendeu. Se descontraiu e caiu na gargalhada. Guardaram o que restou da comida na cesta. E ao se encaminharem para o carro, Cláudio parou o amigo pondo a mão sobre o peito dele.
-O que foi? - perguntou Sandro.
-Há uma pequena folha de grama em seus cabelos. Espere que vou tirá-lo.
E com gesto proposital quase afetado, com delicadeza retirou a sujeira do cabelo do amigo.
-Vá à merda!
E quase numa retribuição, Sandro abre a porta do carro, fazendo uma saudação para o amigo entrar. Cláudio já estava dentro do carro quando gritou:
- Os peixes, os peixes, esquecemos dos peixes.
E saiu numa desabalada carreira, voltando logo em seguida exibindo o troféu. Subiram no carro e deixaram o bucólico recanto das descobertas onde ainda a meia-luz da tarde resplandecia ao fundo.
Pronto. Colocou o ponto final. Será que gostarão? Não sei. Também pouco me importa se gostem ou não. O importante é que eu gostei de escrever. Clicou no arquivo. Salvar. Fechou o word. Desligou o computador. Apagou a luz da sala e foi dormir.
Pastorelli

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

trivial

angélica t. almstadter

atestado de invalidez
beijos de vampiro
servidos com salada de ossos
finamente regados 
com um filete de sarcasmo
e pitadas de orgulho puro
bom - apetite!
eis a iguaria que deves louvar
não te faltará à mesa todos os dias!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Cadê?






Com passos pequenos separando uma perna da outra em passadas férteis de sono, ele andava dentro da sua condição de humano apenas para constatar sua existência no mundo. Mas não se chateava, tendia às vezes para uma excêntrica depressão aos poucos eliminada no correr do dia.
Fazia frio. Enfiou as mãos nos bolsos da calça
Tiritava, não conseguia soltar os músculos que tensos fazia seu corpo tremer alucinado. Nunca gostou do frio. O vento gelado cortava sua pele adormecida feito gelo.
Com o dedo enluvado comprimiu o botão chamando o elevador. Droga! Chegara na hora do pico. Os elevadores vinham abarrotados. Às vezes era obrigado a esperar três, quatro ou cinco elevadores, e assim mesmo quando conseguia entrar.
Por incrível, naquele dia entrou no primeiro. Estava vazio! Não tinha ninguém! Apertou o botão. A porta fechou e ele encostou-se ao fundo. O elevador subia silencioso, lento, quase não se sentia seu movimento. Parava em todos os andares. E o gozado é que ninguém subia.
Ele estava completamente sozinho...
Foi sua constatação quando saiu para o corredor. Tudo vazio. Onde estava o pessoal? Normalmente essa era a hora intensa de um vai e vem de funcionários...Será que é Domingo? Não, não poderia ser! Será!?!? Ter-se enganado?! Continuou andando. No fim, virou à direita. Vazio!? Estranho! O que acontecia?
Não, só pode ser Domingo. Olhou o calendário. Não, não era Domingo. Era Quarta-feira, dia 20. Então onde estava o pessoal?
Indeciso parou um instante diante da porta. Quando estendeu a mão para girar o trinco, de supetão a porta foi aberta. Ele precisou recuar dois passos para trás. Quase cairá. E no susto, pego de surpresa, não conseguiu ver quem tinha saído.
Respirou. Abriu a porta e entrou.
A sala estava no maior silêncio. Para seu alívio não era Domingo, não. Estavam todos ali, sentados em suas mesas trabalhando. Todos de cabeça baixa sobre os papéis. Ninguém parece, notou a sua entrada.
Encaminhou-se para o seu lugar. Era dificultoso, pois as mesas estavam quase encostadas umas as outras. Havia um exíguo corredor entre elas, que mal dava para passar. E o seu lugar era quase perto do banheiro, logo depois da loira.
Ninguém notava sua presença, nem o pessoal que por qualquer coisa insignificante, gostavam de fazer piadas, tirar sarro. Estavam todos silenciosos, quietos, dava até nos nervos. Talvez estivessem de mau humor.
Com muito custo chegou ao seu lugar.
Parou... Surpreso o seu lugar estava vazio, sem a mesa. Olhou para os lados pronto a reclamar. Ninguém parecia nem vê-lo, mesmo assim perguntou:
- Cadê a minha mesa?
Silêncio. Não ouviu resposta.
Perguntou mais uma vez:
- Cadê minha mesa?
Novamente o silêncio.
Virou para a loira tocando seu braço.
- Onde está a minha mesa?
A loira nem se mexeu, continuou carimbando os papéis. Dirigiu-se ao rapaz.
- E você! Pode me dizer alguma coisa a respeito?
O rapaz olhou para ele com um olhar perdido na distância além dele. Seguiu o olhar do rapaz e viu o gerente fazendo sinal. Será que é comigo? Pensou. Foi até o chefe. Talvez ele tenha alguma explicação para dar, quem sabe?
- Pois não... Cadê minha mesa?
O chefe olhou para ele com um olhar duro
- O que o senhor faz aqui?
- Ora! Que pergunta, chefe! Vim trabalhar. Hoje não é Quarta-feira? Então, vim trabalhar...
- Acontece que vou lhe fazer uma confissão, meu rapaz.
- Que confissão, chefe?
- Desde ontem o senhor não trabalha mais aqui, o senhor foi despedido.
- O que?
- Não te comunicaram? O senhor foi demitido, mandado embora, rua...
Diante da mudez dele continuou
- Vá embora que esta atrapalhando os que querem trabalhar.
Deu as costas para ele e entrou na sala deixando-o no meio da seção. Com passos pequenos separando uma perna da outra andou dentro da sua estupefata mediocridade, saiu da sala.
Ninguém mais soube dele.
E creio que nem ele mesmo soube.

pastorelli

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

sua excelência: o eleitor


angélica t. almstadter
01/11/2010

sorriso franco, esperança na mão
subiu e desceu ruas
adentrou avenida assoviando


anônimo importante
só um número ou uma digital
e o sorriso ainda franco


clicou, pegou o bilhete e saiu
rumo a favela, ao gueto
não respondeu a provocação


na noite de sua alegria
o sorriso virou gargalhada
guardou a arma para outra ocasião