segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ludo.


Decidirá logo de manhã enquanto tomava o café.

Não deixaria mais os fantasmas se alimentarem das lembranças coladas nos objetos que ao longo dos anos foram se amontoando.

Assim, com determinação estava a remexer nos esquecidos empoeirados cheirando a mofo. Mexendo aqui, retirando um objeto dali, foi sendo invadida por uma onda de sensação envolvendo sua alma que, extática, deixou-se levar.

Era mais ou menos como uma ferida aberta que a saudade abria levando-a pela surpresa, as forças tomaram outro alento, e como renovada, foi empilhando o que deveria ser jogado fora.

De repente escutou um som. Pareciam dados caindo em cima de madeira. O que seria? Procurou. Era um som imperceptível. Mas agora, estava mais nítido, mais alto, mais próximo. Sorriu. Que bobagem pensar nessas coisas! Sua imaginação cheia de filmes... que bobagem. Fez um gesto como se dissesse: Isso é idiotice.

Continuou com o serviço. Nisso seus olhos pousou no tabuleiro encostado a parede. Era dali que vinha o barulho de dados. Sim! Era dali. Dava para ouvir com nitidez os dados correndo pelo tabuleiro. Pegou o tabuleiro e colocou em cima de um caixote que estava perto. Não tinha mais dúvidas. O som que ouvia era dali. Olhou para os lados. Onde estavam as pedras. Revirou as coisas. Ah! Aqui estão.

Ajoelhou-se em frente ao caixote. Foi colocando as pedras, uma por uma em suas respectivas casas. As amarelas, as vermelhas, as pretas e as azuis, cada cor com quatro pedras. Quando colocou a última pedra no tabuleiro com desenhos gastos, deixando aparecer o rústico da madeira, ouviu alguém chegando. Foi ver quem era.

- Ah! O que houve tio? O senhor não era para...

- Sim... era... mas...

- O que aconteceu, tio?

- O seu filho...

- O que tem ele?

- Está na Santa Casa.

- Na Santa Casa? Aí minha Nossa Senhora...

- Calma, não aconteceu nada.

- Como não aconteceu nada se ele está na Santa Casa?

- Ele quebrou só a perna. Já estão trazendo ele para cá. Arruma a cama que ele vai ficar um bom par de tempos deitado sem se mexer.

Dito e feito. Quando ela aflita chegou no corredor, vinham trazendo o filho todo refestelado como se nada tivesse acontecido, numa cama de hospital. Junto estavam os primos, os irmãos, o pai, os enfermeiros, todos falando ao mesmo tempo para uma mãe assustada. Ao ver todo aquele alvoroço começou a chorar.

- Que é isso, mulher? Larga de ser boba, não vê que nosso filho está bem; disse o pai abraçando a esposa.

Arrumaram a cama onde ele ia ficar os três meses deitados. Pouco tempo depois à engrenagem rodava de novo nos eixos.
Passados dois dias, o cunhado chega entrando no quarto.

- Olha o que eu fiz, diz.

E coloca o tabuleiro no colo do sobrinho. E daquele dia em diante a casa não teve mais sossego. Tinha sempre alguém jogando Bodum com ele. Durante os três meses, só se ouvia risadas, torcidas, palavrões, gritos e o barulho dos dados rolando no tabuleiro de madeira.

- De quem é a vez?

- É a sua.

- Não, é a minha.

- Não rouba seu ladrão!

- Não deixem a vermelha entrar.

- Aí, viva! Pensa que vai ganhar?

E assim era, quando não eram os irmãos, eram os primos, os tios, as tias, sempre que chegavam corriam lá para o quarto do enfermo.

- E aí, vamos jogar?

Às vezes as jogadas demoravam em acabar, chegando a avançar a noite adentro. Assim foram os três meses. O tabuleiro ficou gasto. Os quadriculados sumiram. De tanto baterem o copinho em cima e arrastarem as redondas pedras de madeira as cores sumiram.

Aqui é a vermelha. Ali as pretas. Amarela no outro canto ao lado da azul. Já sabia de cor a colocação das pedras. Passou os dedos contornando cada linha, cada casa, cada quadrado, ouvindo as vozes, as risadas...

Uma lágrima deslizou caindo bem no meio do tabuleiro.

Ela se levantou. Da porta olhou para o interior, depois para o tabuleiro e viu todos eles, um por um, ali em volta jogando Bodum.

- Não vou... talvez outro dia eu continuo com a limpeza.

Saiu fechando a porta e passando a mão nos olhos.

As vozes, o barulho dos dados, as risadas, os gritos de ganhei, ainda continuaram por um longo tempo.

Pastorelli

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita. Esperamos que volte