sexta-feira, 29 de abril de 2011

Eva proíbida

Eva proíbida
Cristina Pires

Dizia-me Sebastião, que deveria escrever - Pelo menos, pelo menos! - uma crónica, ou conto, por mês. Esta comecei-a há seis anos, e só hoje a dou por terminada.

Olha, escreve sobre a tua vida! Achas que a minha pouca vivência tem algo que possa despertar a curiosidade de um leitor? Vamos lá! ao menos um leitor, tens! Eu, por exemplo. Tu escreves, e eu leio. Para isso tenho que ter tempo, caneta, papel e ânimo. E neste momento sobeja-me, papel e caneta. Pois eu podia contar-te a minha vida, inteirinha! E tu, escrevias. Sobeja-me papel e caneta, repeti.

Tu lembras-te do Carlos? Devo ter ficado com cara de espanto. Olhe o leitor se eu lhe perguntasse se se lembra do Zé. Zés há muitos, sua palerma! - tenho a certeza que seria isso que pensaria. Um nome pessoal, só, torna-se impessoal, se não for acompanhado de um apelido que o valha: o Zé do talho, o Zé da mercearia, o Zé Favinha, etc., etc. Só para o meu tio Duarte, é que são todos Zé Maria do Pincel, quando não conhece o apelido que o valha.

Do Carlos Alberto, pá. Aquele que te esfolou o joelho quando eras miúda. O da Dona A.! Não me esfolou o joelho. Caí e esfolei o joelho por causa dele. Não é o mesmo. Ainda tenho a cicatriz. Aquele, sim, é que era um mariquinhas. Sabes que se tentou matar duas vezes? Sei, ou já te esqueceste que vivia no prédio ao lado do meu? E, na primeira tentativa, quem ficou esfolada fui eu. Tudo por causa do Comandante Koenig, das luas e dos céus. Quem quase foi para o céu, foi ele, e eu para o purgatório porque me esqueci que a directora da escola queria falar comigo, e quase que não apareço. Que grande barraca foi aquela, hã? Pois foi. Ele tinha más notas, e o pai castigou-o sem o espaço. Não fez outra, enfiou um frasco de comprimidos goela abaixo, e cá vai disto ó Evaristo. E tu que foste a correr para falar com a directora. Se não tivesses um peso na consciência, não tinhas ido a correr.

Quase que lhe esmurrei a gargalhada. Estávamos, afinal, a falar de coisas sérias e antigas. Coisas com um quarto de melancólico século. Como o tempo se esvai...

Estou, agora, a lembrar-me dele, à varanda, no primeiro andar. Primeiro aparecia a mãe, e depois, ele. De tarde, cruzavam os braços e as pernas sobre uma mandriice descarada, e ficavam no parapeito da janela à espera dos burburinhos. Gostava de coscuvilhar, o malvado. Mas também era útil. Às vezes avisava a vizinhança, aos berros, quando chovia: - Ó D. Sara, olhe a roupa! D. Zezinha, tem o canário cá fora. Ó D. Maria do Carmo, está a chover.

A casa, sempre um brio. O meu Carlos Alberto, limpa a casa melhor que eu, dizia a Dona A. a quem a quisesse ouvir. Também me lembro, que era ele que assava as sardinhas. Punha o grelhador à janela, apoiado nos ferros da corda de secar a roupa. Depois, era uma azafama a limpar os vidros da marquise. Ah! mas não pense o leitor que o Carlinhos não avisava, antes, que ia assar sardinhas. Corriam a fechar janelas, com medo daquele cheirinho, que, agora, deu-me saudades. Coitado. Quantas vezes não lhe chamei borboleta e ele não se incomodava. Dizia-me que gostaria de ser uma: alegre e livre. Pior eram os que lhe chamavam menina Carlota. Cheguei a zangar-me com aquela malta. Até à porrada andei.

O gajo tinha jeito para o teatro, e para o ballet, não tinha? Pois tinha, mas proíbiram-no, que essas coisas eram coisas de menina. Fizemos teatro juntos. Então, eu não sei! E porque é que não continuaste? Até me lembro da tua mãe, sempre a dizer que tu tinhas muita queda para o teatro, só não tinhas era onde cair.

Desfigurei-o. Meti-lhe a mão à boca, desapertei-lhe as bochechas, enfiei-lhe o braço até às entranhas, e arranquei-lhe os bofes. Bofete-ei-lhe as gargalhadas insolentes. Na próxima crónica, mato-o, esfolo-o! Deixo-o como um cristo. Desvendo-lhe os mistérios, como ele desvenda os de Carlos.

Tu achas que ele já nasceu com aquela tara, ou...? Nã! Então, tu não sabes que a coisa pega-se? Tens com cada uma, Sebastião. Diz-me, tu eras muito amigo dele. Andavam sempre juntos... Chega para lá essa boca! Ele é que não me largava. Até para ir ao baile dos Penicheiros, tinha que ir com ele atrás. E de miúdas, nada! Aquilo afugentava as miúdas todas. Deixa-te de coisas. Bem que aproveitaste. Quantos copos é que ele não te pagou, diz-me? Ora, pagou-me o tempo que o aturei, e ainda ficou a dever-me.

Mas o tempo não queria aturar o Carlos, pensei. Não sinto pena dele. Sinto que não era compreendido pelo tempo, e que o mesmo ainda hoje lhe deve. Nunca ninguém lhe conheceu uma namorada. Amigos, tinha alguns. Uns para cada ocasião. Sebastião quando andava penado, achegava-se a ele. Outros... achegavam-lhe. Um, mais que os outros.

A segunda tentativa que fez para acabar com a vida, já era adulto. Saía furtivamente de casa, durante a noite, e regressava de madrugada, antes do acordar da vizinhança. A mãe fechava os olhos, mas o pai arregalou-os até ao branco, até ficar cego. Proíbiu-o de sair de casa, e de ir ver o Adão. Desta vez não engoliu comprimidos. Atirou-se da janela do quarto.

Para mim, nunca ele tentou matar-se, ou suicidar-se. Engraçado! Existe furtar e roubar. Furtar é apoderar-se de algo alheio, sem violência. Roubar, é subtrair para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência. Chego ao término desta crónica sem saber se Carlos furtou-se ou roubou-se. Uma coisa é certa: roubaram-lhe o paraíso.

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