segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O menino e o tio.


Feito intrépido Rocicler enfrentando a poeirenta estrada, o velho caminhão apelidado carinhosa­mente de Mazzarope resfolegava em mais uma viagem transportando o pessoal.

Em pé na carroceria junto com os outros, ele se equilibrava numa disfar­çada brincadeira para ver quem permanece­ria mais tempo em pé. Brincadeira estúpida, não gostava. Preferia ficar deitado no assoalho de tá­buas brancas que exalava cheiro de cevada con­templando o céu azul, mas como estavam em mais de vinte pes­soas era obrigado a participar dessa brincadeira boba.

Seus olhos castanhos esverdeados claro lembravam os olhos da vó dardeja­vam um inquieto brilho de raiva, duro, ma­goado, de quem es­pera uma oportunidade, e quando ela chegasse não iria perdê-la, ah! não, não iria perdê-la por nada, seria seu passaporte para a vida futura.

A humilhação quei­mava na mente como ferro em brasa. Os ouvidos martelavam as gozações, as risadas ao verem ele sem calça, nu, pelado na frente de todos. O tio, irmão mais velho da sua mãe, segurando sua calça era quem mais go­zava da sua cara. Como odiara o tio, odiara aquele momento. Seus olhos fuzilaram o tio, seus dentes rangeram um contra o outro num ódio imenso. Nada pudera fa­zer, a não ser se esconder. Num safanão arrancara a calça da mão do tio e fugira. Ah! Ele não perdia por esperar.

Che­gavam à cidade.

Para­riam na casa do tio como faziam toda vez que havia matança de porcos, para a distribuição do quinhão perten­centes a cada uma das fa­mílias. Era nesse momento que ele iria ter a chance. Era só ficar de olho aberto, vigi­ando.

En­quanto o velho Mazzarope atravessava a rodovia en­trando na cidade, revia os acontecimentos que gostaria nunca ter acontecido. Descendo do ca­mi­nhão no pátio da fazenda, a pri­meira coisa que viu foi os porcos sacrifi­cados. Um estava em cima da mesa sendo destrinchado pelas mulhe­res, o outro boiava num tacho de água super quente, e logo mais adi­ante, perto do chiqueiro, um terceiro guinchava e se esperneava perce­bendo seu des­tino. Por fim, se rendendo deixou-se esfaquear pela mão firme do tio que decidido enterrou fundo a faca pontuda na carne do animal espirrando sangue que fora recolhido numa grande caneca.

E quando arrumavam as coisas para vir em­bora, o tio teve a infeliz idéia de arran­car sua calça na frente de todos. O que lhe doía não era o fato de ficar nu, as gozações, os deboches, as ri­sadas das meninas, das mulheres, e sim, o não poder se defender, o não poder revidar o tio sendo obrigado ao vexame.

Vigiando os movi­mentos viu quando o tio ao chegarem foi deitar-se para um pequeno e leve descanso. Esperou até que o tio fechou os olhos e devagar, sem fazer ru­ído, chegou bem perto. Sentia até o hálito do ronco.

Não esperou mais. Desceu a mão em cheio, foi um tapa estrondoso no rosto do tio que assustado não teve tempo de segurar o so­brinho que em desabalada carreira fugia do quarto.

A partir desse dia nunca mais falou com o tio.

Pastorelli

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