quinta-feira, 28 de outubro de 2010
O que nós queremos!
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Tenho medo
terça-feira, 26 de outubro de 2010
As amigas.

Intrigava-se por não encontrar nenhuma. Não se importava se a resposta fosse certa ou errada. Queria uma resposta. A mente flanava sobre um mundo de interesses que forçava pinçar palavras no subconsciente. Procurava palavras agradáveis, excitantes, forçava-se a prestar atenção nas horríveis novelas. Se enredar na idiotice das tramas. Assistia a todos os programas de entrevistas. As vezes achava algumas interessantes, outras vezes se martirizava diante dos programas de auditório o domingo inteiro.
E tudo para que? Não pensar, não formular a integrante pergunta. Porém todas as tentativas resultavam infrutíferas, sem êxito voltava a pensar. Não queria. Como se livrar do pensar? Ler um bom livro? Ouvir uma boa música? Horas a fio o rádio esbravejava sonoridade que não prestava atenção.
Faltava-lhe talvez o que a maioria das pessoas desfrutava. Os olhos azuis percorrem de um móvel a outro reluzente. Cansados se fecharam. O que nada resolvia, pensou aflita. Ninguém estava afim. Era sua culpa? Não claro. Suas intenções eram boas. Só não alcançavam o objetivo. Seria o modo de agir? Estaria agindo incorretamente? Desfavorável talvez. Não seria defeituoso ...
Virou o rosto. O cheiro de cigarro misturado com cerveja revirava seu estômago. Abriu as pernas. Prendeu a respiração. Fechou os pulmões e começou a contar: um...dois...três...quatro...bem lentamente... sorvendo o ar para dentro de si... cinco... seis... sete... oito... nove... dez... soltou quase violentamente o ar empurrando o mal estar para o canto.
Na cadeira perto da janela, estava as roupas amarfanhadas, amontoadas num desleixo proposital. Despojadas do conteúdo que dá vida a elas. Tudo aquilo lhe mostrava a imóvel evidência da sua permanência dentro de um mundo doente. Sorriu. Parecia letra de música.
Num mundo doente sentia ela desconfortável. O peso masculino machucava suas costas. Estava cansada daquela posição submissa a qual, não podia agir, expulsar o mal entumecido entre suas pernas. Aceitara aquilo sim. Havia momentos que desejava, e por mais que se lavasse, se perfumasse, o cheiro implacável de cerveja, café, cigarro, suor azedo, imundo, nojento, permaneceria muito tempo na pele, nos pelos, na carne, até nos ossos permaneceria pelo resto da vida.
Seria, seria não, era sua marca, estava irremediavelmente marcada. Confessava constrangida que as vezes desejava o asqueroso universo masculino dentro dela, penetrando-a lentamente. O que a mortificava era que dificilmente encontraria alguém que não agisse mecanicamente. Eram todos despojados de amor, de desejo, de carinho..
Suspirou. Problemas. Sentimentos. Dúvidas. Mesmo a dor não a revoltava mais. Passava a aceitar tudo que lhe cabia aceitar como demonstração de força. Olhou para dentro de si e tomou consciência de que o sujeito demorava. Via a bunda branca e peluda refletida no espelho do teto.
Ele pensa o que é? Tinha de atender outros clientes. Não podia ficar de pernas aberta só para ele! Começou a se irritar com a pele áspera, a língua nojenta em seu corpo. Se fingisse que se excitava? Suavemente começou a passar a ponta das unhas nas costas peludas e suadas, então, o viscoso e quente jorro inundou escorrendo por suas coxas. Estremeceu livre do peso. Pronto desgraçado está satisfeito?
Ah! um dia, sonhava, um dia livre da submissão estaria longe dali. Estaria longe. Ao se levantar jurou nunca mais amar. Via urgência de sair dessa vida. Por enquanto aquentava.
Friamente recebeu o dinheiro que o homem lhe dava. Quando a porta se fechou as suas costas, se jogou na cama cheirando esperma e suor azedo, maldizendo a vida, odiando seu destino. Odiando tudo o que rodeava seu mísero mundo. A campainha da porta tocou.
Foi abrir. Droga! não se pode ficar um minuto sossegada. Jogou o roupão vermelho sobre o corpo. Qual não foi sua surpresa ao vê-la novamente. Meu Deus, não pode ser!? Ela não tinha viajado? Se mudado? O que ela queira?
Aproveitando o susto da amiga, empurrou a porta e sem esperar pelo convite entrou e se acomodou no sofá maltratado. O que foi? Não fique aí parada como se visse um fantasma. Vamos conversar. O que? Conversar? O que? Queria conversar!? Que atrevimento invadindo assim minha privacidade!
Os nervos doíam por baixo da pele. Saudades? Estava com saudades? Como pode ser hipócrita, meu Deus. Dizia sempre: Um dia vou na sua casa, e nunca foi. Agora repentinamente quem ela vê ao abrir a porta? A amiga. Vou na sua casa, se de fato quisesse talvez o relacionamento delas não teria chegado ao fim como chegou. Mas não. Nunca foi a sua casa, e hoje, depois de....quanto tempo?....três ou quatro anos aparece sem avisar. Quer dizer, resolve aparecer, depois de tudo. Suspirou olhando o telefone que permanecia mudo. Deve ter recados na secretária, pensou aflita. Não ousava verificar enquanto a amiga estava ali.
Notou quando voltava do banheiro um copo na mão dela. Desculpe, disse, tomei a liberdade de me servir. Seus lábios sorriram um sorriso leve e entreaberto deixando aparecer os dentes brancos, sorriso que a fascinava. Parecia a dona do ambiente. Se aproximou no intuito de tirar o copo da mão dela. Mas sem saber porque recuou como se dissesse não ser oportuno.
Não estava com medo dela. Não tinha medo de ninguém. Durante todo o tempo ela falava, falava sem tomar fôlego. Em pé no meio do quarto, parecendo aqueles bonecos ridículos que se dá corda e não para enquanto a corda não termina. Falava em voltar a ser amigas novamente, em compreensão, em amor, que a amava ainda, traição, amizade... Espere, gritou enfurecida, não fale em amizade. Porque? espantada perguntou ao colocar o copo vazio em cima da mesinha.
Agora eu é que vou lavar... Decerto se julga uma grande amiga, não é? Esperou. Como ela permanecia calada, continuou. Deixe refrescar sua cabecinha de vento. Quem desesperada pediu a você um mísero empréstimo? Quantia pequena. Duzentos reais. O que aconteceu? Você recusou, lembra-se, me disse: Oh! querida, e me abraçou, no momento não tenho, mas se quiser te dou um quadro meu para você rifar.
Até poderia ter aceito, mas eu queria o dinheiro na hora. Iria e realmente fui despejada e você nem se dignou a se preocupar. Sentiu amargura. Sentiu ódio. Revolta. Jurou naquele momento nunca mais vê-la.
A partir daquele dia, fez de tudo para se desvencilhar da amiga. Ia aos encontros sempre acompanhada. Recusava bebidas alcóolicas. Sabia que embriagada perdia as forças e se entregava aos caprichos dela. Não, chega, já fazia mais de dois anos que não se viam.
E hoje ali, diante dos seus olhos estava ela resmungando hipocrisias. Abrindo feridas que julgava curadas. O tempo corria no barulho dos carros lá embaixo. Ah! o tempo definitivamente corria em todos os lugares. No olhar penetrante das duas, no silêncio das vozes cansadas. Pensar no tempo dá um terrível frio por dentro.
Que tola, em tudo corria o tempo, até no sorriso do galã pendurado na parede. Tempo ingrato que nunca ofereceu oportunidade alguma, que nunca mostrou o caminho que deveria percorrer. Tempo que não leva essa ingrata daqui, que não percebe o fim de tudo. Quase gritou: Acabou. Vá embora. Gritava todos os poros do seu corpo. Vá embora, gritou por fim com raiva.
E ela devagar sem demonstrar pressa e quase que numa atitude indecisa, pegou a bolsa e saiu batendo a porta. Ufa! pensei que não fosse embora. Mulher desgastante! disse ao mundo. Ao mundo dos desagradáveis afazeres. Tudo é como a gente não quer, resmungou tirando o roupão e nua sentou na cama e acendeu o cigarro e ligou o rádio e deixou o tempo passar pela sua vida que estava existindo sem que realmente vivesse.
pastorelli
terça-feira, 19 de outubro de 2010
A viagem de volta.

pastorelli.
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
Antologia 2010

além da capa que foi concepção minha a partir de uma foto cedida por minha filha: Jussara Almstadter.
ainda há um prefácio delicioso de Uraniano e as poesias de amigos que sabia da qualidade, mas me surpreenderam mais ainda ao ver publicado.
Eu apanhei na mão minha cria, cheirei, acarinhei e me senti orgulhosa de mais uma vez participar de uma Antologia nascida de um grupo virtual, pq eu vi empenho, dedicação, doação, amizade, companheirismo e acima de tudo par-ce-ria!
Obrigada Conceição, Tânia e Clóvis pelo empenho em nos ajudar a realizar esse sonho de dar luz à nossa cria literária.
Sou suspeita pra falar, pq faço parte desse seleto grupo, mas sinto uma ponta de orgulho de estar no meio de gente tão gente!
Obrigada pela amizade, pela companhia e por me incluir nessa jornada.
beijos
Kika
A velha senhora.
Ela estava onde sempre esteve.
Quieta alheia a tudo o que ao redor se passava. Cabeça abaixada, o queixo encostado ao peito, o corpo encurvado, o olhar perdido em vagos pensamentos rememorando o tempo e o espaço com fatos que se fixaram na memória do enfraquecido corpo e nas enrugadas mãos que se mexiam num laborioso trabalho imaginário dobrando e desdobrando a barra do vestido.
Sua mente deslizava no escuro, numa suavidade em uma nesga que pouco se importando com o que ocorria ao seu lado.
De vez em quando alguém ao passar por ela puxava o vestido interrompendo o que fazia. Girando com dificuldade a cabeça olhava a pessoa como se fosse dar bronca ou falar e, conforme a ocasião, como se procurasse por alguém.
Tinha medo de ficar sozinha.
Fosse esquecida a espera da morte. Da morte propriamente não tinha medo. O que a apavorava era ficar sozinha, morrer só, sem ter quem segurasse sua mão.
Não distinguia as vozes, gostava de ouvi-las ressoando pela casa barulhenta. O sobe e desce a escada de madeira. O liga e desliga a televisão. As vozes eram um amalgama de sons, sem distinguir de quem era ou de onde vinham, assim passava a vida.
Mas um dia, entretidos com seus problemas não viram que com dificuldades ela se apoiou no braço da poltrona e lentamente ficou de pé. Olhou para os lados. Só a neta de cabelos encaracolados olhava para ela. Todos continuavam conversando não viram ela se levantar.
Seguida pela menina atravessou a sala, passou no meio de todos, abriu a porta, sorriu e jogou um beijo para a neta e foi embora.
Pastorelli
sábado, 9 de outubro de 2010
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
SEDEX
domingo, 3 de outubro de 2010
A paz mundial é importante.
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A sua fama de indeciso era sumariamente conhecida.
Todos que a ele, por uma razão ou outra tinham afinidades, achavam, principalmente a noiva, uma fraqueza, enquanto outros, inclusive Arenice, achavam que ele usava o poder de indecisão como arma reflexiva. Mas o que todos não sabiam, é que ele se conhecia muito bem para negar e avaliar a opinião que dele faziam. E isso o deixava diante de um impasse difícil, como agir? Sua conduta dizia que deveria simplesmente viver como vivia, apenas viver. Ao ouvir as vozes da sala como flechas incandescentes, sentia-se empurrado a desprezar o desânimo e avançar outro passo ao desconhecido. Pensou em retroceder. Era tarde, o sentimento a flor da pele incitava-o a iniciar os passos rumo a liberdade, em avançar, mesmo que a indecisão o impedisse. Paralelo a raiva crescia incontrolável ungindo num só ato os dois sentimentos paralisando sua atitude. Estava próximo a continuar e se perguntava, deveria? Claro que sim, respondeu seu ânimo fraco procurando disfarçar a timidez. Ao chegar iniciara um gesto que suspenso, interrompeu o movimento, os dedos esticados a poucos milímetros da maçaneta da porta, projetava o próprio ato incitando-o a continuar. Deveria continuar? Por que? Para que? Possuía a noção, pequena mas possuía a noção da necessidade de que deveria continuar, fazer algo, permanecer a espera dos acontecimentos não era digno, deveria e tentava dar continuidade ao movimento iniciado por seus pais. É verdade, se indeciso se encontrava prestes a entrar na sala, fazer parte da balbúrdia, tendo somente a porta entre ele e a sala, ouvindo as risadas grotescas, fúteis, aflorando sua incapacidade como prova, fazendo parte da sala, do ambiente da sala, é que em seu rosto quase retangular, de olhos claros, cabelo loiro, lábios grossos, aflorava uma feição grave evidenciando a indecisão. Parado em frente a porta do atelier decidiu entrar, não podia mais voltar, girou a maçaneta e empurrou a porta.
Espantoso como reconheço minha incapacidade e nada faço para dissipá-la, dizia mentalmente. Mesmo assim, com esse reconhecimento parecia-lhe terrível expressado em palavras. E, também era uma demonstração de revolta, o que lhe parecia mais justo, revolta contra si mesmo. Continuava depois de todos esses anos a freqüentar o atelier. Dizia que era para ter alguma coisa a fazer, para espicaçar a motivação adormecida, para alimentar o concreto sentir que ainda existia nele dizendo sempre: Preciso fazer alguma coisa, lutar, sair dessa modorra. Vontade mesmo não tinha, era lhe indiferente o que estivesse fazendo e a arte era uma delas. Achava descartável, gostava de dizer que a arte nunca fora sua paixão, o máximo que podia admitir é que era bonita, simples enfeite para cabeças ocas pendurarem na parede de suas casas. Não acreditava que um quadro refletisse uma questão social, política ou pessoal. Era enfeite e pronto, não se discutia mais. Freqüentava o atelier era para preencher o tempo ocioso, o vazio. Não sonhava ser um artista plástico. Enfrentava a pintura por considerá-la de todas as expressões artística a mais versátil de se produzir, por ser o que admitia: Enfeite. Todos esses cinco anos mantendo a rotina monótona, descobrira o quanto difícil é expressar no linho branco da tela as formas de incertezas, de emoções, de sentimentos que o professor paciente o incitava a pintar. De tentativa em tentativa, compreendia que nestes cinco anos não aprendera nada. E numa voz mecânica sem emoção, porém consciente filosofava: Tenho muito a aprender ainda. As vezes julgava melhor desistir, como agora, indeciso em frente a porta. Mas picado por um alfinetada imbuída na voz calma e paciente do professor, mostrando a ele as formas de energia e a convicção da arte com que ele, professor necessitava e como conseguira a enorme bagagem para dela viver, e dando-lhe junto com o irmão também artista plástico, a oportunidade de concretizarem o sonho de montar um atelier, esse atelier, o Atelier Ingres, sendo hoje quase que amplamente conhecido e que vinha cumprindo o proposto desde o início de suas atividades, mostrava tanto a ele como para todos que o freqüentava, que a arte é e sempre será útil, prazerosa e necessária, não só para o professor como para quem dela souber conhecê-la. Ele sabia até muito bem a história do atelier e as dificuldades, as lutas e o sacrifício para conseguir manter o pequeno aconchegante ambiente funcionando e dando prazer. Num tom de brincadeira costumava dizer que a culpa dele estar ali era da Arenice.
Antes eles estudavam na Escola de Desenho e Pintura de Belas Artes da Cidade, como era conhecida, e por desinteresse do dono, também artista plástico e professor, foi fechada, deixando tanto ele como Arenice e os outros alunos sem onde estudarem. Foi quando indeciso, decidiu desistir, contudo Arenice o convenceu a não parar. E conversando, ela mencionou a existência do Atelier Ingres, a qual sua amiga, médica onde ela trabalhava freqüentava. E propôs que fossem lá.
Hoje não consegue explicar ou definir, porque passivamente aceitara freqüentar o atelier, não que o ambiente reinante nas aulas noturnas fizessem com que achasse inútil sua presença diante do cavalete. A princípio tomado pela timidez junto com o acanhamento, se refugiara num mutismo egocêntrico. Admitia, passados cinco anos tivera pouco progresso, e esse progresso pouco lento não vinha das aulas, ou do atelier, e muito menos do professor que se esforçava em ensiná-lo. Essa lentidão vinha dele, era sua particularidade que exposta por estar ali se descobrindo. Era um afeto psíquico do seu íntimo revelado nas freqüências que tinha ao atelier. Parado em frente à porta indeciso, sentia a inibição crescer prendendo os movimentos. A noção do que fazia ou que acontecia naqueles momentos em frente a porta, se perdia na bruma do esquecimento. Parado perguntava angustiado, devo ou não entrar, e num milésimo de segundo sem que tomasse uma resolução se via dentro da sala cumprimentando o pessoal. No final da aula saía grato, com ânimo renovado, confiante, para na semana seguinte começar tudo de novo. Possuía a opinião que deveria se empenhar mais, se atrever com mais ousadia, ir além do que se propusera, e, no entanto a fraqueza turvava os movimentos. A razão surgindo de repente dava-lhe vazão criando um branco, deixando-o em frente da tela sem saber o que fazer. Ao seu lado a amiga pintava num método singular todo seu. Gostava do que ela fazia. Era a única que com suas formas criativas ousava dentro do marasmo reinante. Formas eróticas, sensuais que surgiam provocando um questionamento que chegava a chocar. Suas figuras sensuais se evidenciavam na beleza dos corpos nus, na distorção premeditada dos modelos revelando um toque criativo e imaginoso.
A questão era: possuía imaginação criativa? Podia ela proporcionar-lhe continuidade? Melancólico voltou à atenção à tela. Refez um traço torto na figura principal. É arte o que faço? As formas alongadas, disformes, distorcidas arredondadas, como conseguira criar essas monstruosidades? Se gostavam por que recusar, por que não fazer! Criado numa adolescência onde a cultura sendo estreita, o que ressaltava era a sobrevivência isolando a ambição. Tivera a liberdade tolhida pelo medo das conseqüências formando uma crosta de acanhamento tímido egocêntrico e egoísta. Tomou conhecimento de possuir liberdade muito tempo depois. Quando a ingênua falsidade do noivado procurava esquecer aqueles momentos, rompeu o casulo que o envolvia. Rompimento doloroso em conseqüência da despretensão cega da noiva. Ela sem notar o que ocorria deu-lhe a liberdade que precisava. Possuía criatividade, vendia até razoavelmente bem os quadros. Viver é sentir a si próprio. As pulsões vigorosas fluíam regadas de certa intimidade não como alimento, o que ele achava certo, mas como energia envolvendo-o camada por camada restituindo o sentir que lhe parecia restituído. Era carregado a estar ali dia a dia, no atelier, em frente ao cavalete, criando aquele imenso quadro, junto com todos, junto com a amiga, sentindo-se presente como parte do todo do todo, tendo a mansa sensação de ser recompensado. Chegou desorientado, arremessado contra o muro de falatórios, contra as grades de risadas e aos sussurros abafados, aos poucos eliminados, deixando-se ouvir abertamente, questionando opiniões no desumano sentir alucinado. Trazia nos gestos, nas atitudes, no modo de olhar tímido, a calma, uma espécie de alegria, uma pequena exaltação que se misturava com a apática liberdade conseguida. Observava a amiga entretida criando formas rosadas de anjinhos desnudos. Descobria enfático que nada daria a ela, e por que não aos outros também? por mais que explicasse, a noção do que se passava. Algo se transformava e ninguém percebia. Aproximava-se do ponto exato, talvez a certeza de alcançar o objetivo.
Ela riscava a toalha xadrez da mesa acompanhando a música. Tomava o terceiro café. Não saberia de antemão, ter o desprazer de alimentar um certo arrependimento. Seria egocêntrico. E além do mais estava sendo injusta consigo própria. Não suporto injustiça e de mais a mais, concordara, fora conivente com a situação. E Cláudio? Não quero pensar nele, não agora nesse instante. Não merece. Talvez mais tarde seria oportuno, mas não agora. Não se sabe o que provocará ele. Uma reação absurda, grotesca de quem não sabe o que faz. Faltava-lhe competência ordinária para enfrentar fatos cruciais. Um idiota é o que ele é. A situação é delicada. Aliás, tudo é delicado. As pessoas não sabem que é preciso pouco para se viver. Em pequenos goles espaçados saboreava o café. Como agiria ele? Eu é que vou saber? Não o conheço. Isso é problema dele. Que se vire da maneira que achar melhor. Só peço que não atrapalhe meu fazer. Sorriu resignada. Confiante sentiu-se levada por movimentos acelerados. Desejou sair dali, ir embora. Queria mesmo? Acendeu o cigarro. Quantos cigarros já fumara? Que importa. Por baixo da pele triguenha os nervos se agitavam doendo sua carne. O coração começava alardear a chama selvagem petrificando-a na cadeira. Que fazer? Súbito o olhar descompassado acompanhou o retângulo da porta que se abriu de leve. Sentiu o suave movimento advertindo o coração ao vê-la. Sinto-me amena e nada parecerá existir além de mim. Além dela. Respirou cadenciada novamente ao ver os olhos castanhos de quem sabe o quer procurando. Acenou. E instantes mais tarde, Silvana estava sentada a sua frente. Foi então que compreendeu a total imensidão dos movimentos e não se revoltou diante da abrupta ação da amiga. Sorrindo chamou o garçom e sem dar chance à amiga, fez o pedido. Ao ficarem sozinhas fixou sua atenção na voz maviosa da amiga. Ouvia. Era a qualidade animalesca da sua pessoa, da sua maneira de ser. Falar era para os outros. O que a incomodava. Cláudio insignificante como era, não a compreendia. Seu mutismo era revoltante. Ao conhecer Silvana viu a possibilidade de se tornar outra. Mais envolvente com as coisas, com o mundo. Talvez falante ou tornar-se mais ela mesma. Conheciam-se há um ano. A princípio o medo se apossara da frágil atitude que exprimira. Nascida e criada na burguesia normal desconhecia o sentir. Arrogante acreditava ser possuidora da vida. Ao ficar noiva, em Cláudio tinha a justa sensação de se apoiar num pilar que seria a base da construção. Passados todos esses anos, verificou que o pilar continuava no mesmo lugar. Revoltara-se, não com ele, mas consigo mesma. Um chato, um idiota. Fora burra não ter percebido a mais tempo.
É preciso ter medo... do que? De viver, por exemplo, de sentir as coisas, as pulsões do cosmo, do que se vê principalmente. É. Não ter medo. Não tenho medo. A princípio quando soubera a força de não sentir fora grande que ele teve febre intermitente por vários dias. Hoje não. Riu feliz. Ficar com medo do próprio medo! E via. Estava vendo. Já um tempão que estava vendo. Não era visto. Da posição em que se encontrava era impossível ser visto. No entanto, crueldade, quem pode explicar! Desejou ser visto. Queria até. O que não poderia acontecer. Entretidas o mundo só interessava a elas e pouco se importavam o que pudesse estar acontecendo no mundo. Foi o que compreendeu. Tinham combinado de se encontrarem, e lá estava Isa, não gostava de ser chamada de Isa, Lisandra, e lá estava Lisandra sorrindo no pequeno mundinho. Como demorava se pôs a andar de um lado para o outro, e numa virada para retornar ao ponto de partida, é que vira as duas. Parou. Como acreditar nela depois disso? O pior era ser chamado de idiota, vulgar, sem nunca ter sido. Pelo menos pensava não ser. E suas atitudes? Meramente atitudes que não podiam dar credito. Movidas por impulso de solicitude. Compreendera? Não, não compreendera. Nisso, numa instantânea imagem de colagem, pensou em Arenice. Tumultuado continuava pregado ali. Queria ao mesmo tempo não queria. Docemente como se sentisse o sabor suave de uma fruta, foi sentindo o pequeno sabor de não ser pertinente àquela cena. Duas lágrimas escorreram. A paz mundial é mais importante, pensou. Foi o que percebeu, sentiu e no mesmo instante elas olharam para ele e compreenderam também. A paz mundial é mais importante. Cláudio sorriu não amargurado, mas triste pela tardia descoberta. Enfiou as mãos nos bolsos da calça jeans e começou a andar como se nada houvera acontecido. Elas notaram sua decisão. Lisandra fez menção de querer se levantar, mas foi segurada pela mão de Silvana. Deixou-se cair novamente na cadeira compreendendo o que percebera a amiga. Cláudio atravessou a rua pouco se importando com o tráfego.
- Será que encontrarei Arenice em seu apartamento?
pastorelli