domingo, 3 de outubro de 2010

A paz mundial é importante.

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A sua fama de indeciso era sumariamente conhecida.
Todos que a ele, por uma razão ou outra tinham afinidades, achavam, princi­palmente a noiva, uma fra­queza, enquanto outros, inclusive Arenice, achavam que ele usava o poder de inde­cisão como arma reflexiva. Mas o que todos não sabiam, é que ele se conhecia muito bem para negar e avaliar a opinião que dele faziam. E isso o deixava diante de um impasse difí­cil, como agir? Sua conduta dizia que deveria simplesmente vi­ver como vivia, apenas viver. Ao ouvir as vozes da sala como flechas incandescentes, sen­tia-se empurrado a desprezar o desânimo e avançar ou­tro passo ao desconhecido. Pensou em retroceder. Era tarde, o sentimento a flor da pele incitava-o a iniciar os pas­sos rumo a liberdade, em avançar, mesmo que a indecisão o impedisse. Paralelo a raiva crescia incontrolável ungindo num só ato os dois sentimentos paralisando sua atitude. Estava próximo a continuar e se perguntava, deveria? Claro que sim, respondeu seu ânimo fraco procu­rando disfarçar a timidez. Ao chegar iniciara um gesto que suspenso, in­terrompeu o movimento, os dedos esticados a poucos milímetros da maçaneta da porta, projetava o próprio ato incitando-o a continuar. Deveria continuar? Por que? Para que? Possuía a noção, pequena mas possuía a noção da neces­sidade de que deveria continuar, fazer algo, permanecer a espera dos acontecimentos não era digno, deveria e tentava dar continuidade ao movimento iniciado por seus pais. É verdade, se indeciso se encontrava prestes a entrar na sala, fazer parte da balbúrdia, tendo somente a porta entre ele e a sala, ouvindo as risadas grotes­cas, fúteis, aflorando sua incapacidade como prova, fa­zendo parte da sala, do ambiente da sala, é que em seu rosto quase retangular, de olhos claros, cabelo loiro, lábios grossos, aflorava uma feição grave evidenciando a indeci­são. Parado em frente a porta do atelier decidiu entrar, não podia mais voltar, girou a maçaneta e empurrou a porta.

Espantoso como reconheço minha incapacidade e nada faço para dissipá-la, dizia mentalmente. Mesmo assim, com esse reconhecimento parecia-lhe terrível ex­pressado em pala­vras. E, também era uma demonstração de revolta, o que lhe parecia mais justo, revolta contra si mesmo. Continuava depois de todos esses anos a freqüentar o atelier. Dizia que era para ter al­guma coisa a fazer, para espicaçar a motivação ador­mecida, para alimentar o concreto sentir que ainda existia nele dizendo sempre: Preciso fazer alguma coisa, lutar, sair dessa modorra. Vontade mesmo não tinha, era lhe indife­rente o que estivesse fazendo e a arte era uma delas. Achava des­cartável, gostava de dizer que a arte nunca fora sua paixão, o máximo que podia admitir é que era bonita, sim­ples enfeite para cabeças ocas pendurarem na parede de suas casas. Não acreditava que um quadro refletisse uma questão social, política ou pessoal. Era en­feite e pronto, não se dis­cutia mais. Freqüentava o atelier era para preencher o tempo ocioso, o vazio. Não sonhava ser um artista plástico. Enfrentava a pin­tura por considerá-la de todas as ex­pressões artística a mais versátil de se produzir, por ser o que admitia: Enfeite. Todos esses cinco anos mantendo a rotina monótona, des­cobrira o quanto difícil é expressar no linho branco da tela as formas de incertezas, de emoções, de sentimentos que o profes­sor paciente o incitava a pintar. De tentativa em tentativa, compreendia que nestes cinco anos não aprendera nada. E numa voz mecânica sem emoção, porém consciente filoso­fava: Tenho muito a aprender ainda. As vezes julgava melhor desistir, como agora, inde­ciso em frente a porta. Mas picado por um al­finetada imbuída na voz calma e paciente do pro­fessor, mostrando a ele as formas de energia e a convicção da arte com que ele, pro­fessor neces­sitava e como conseguira a enorme bagagem para dela viver, e dando-lhe junto com o irmão tam­bém artista plástico, a oportunidade de concretizarem o sonho de montar um atelier, esse atelier, o Atelier In­gres, sendo hoje quase que amplamente co­nhecido e que vinha cumprindo o proposto desde o início de suas atividades, mostrava tanto a ele como para todos que o freqüen­tava, que a arte é e sempre será útil, prazerosa e necessária, não só para o professor como para quem dela souber conhecê-la. Ele sabia até muito bem a história do atelier e as dificuldades, as lutas e o sa­crifício para conse­guir manter o pequeno aconchegante ambiente funcionando e dando prazer. Num tom de brincadeira costumava dizer que a culpa dele estar ali era da Arenice.

Antes eles estudavam na Escola de Desenho e Pintura de Belas Artes da Ci­dade, como era conhecida, e por desinteresse do dono, também artista plástico e profes­sor, foi fechada, deixando tanto ele como Arenice e os outros alunos sem onde estuda­rem. Foi quando indeciso, decidiu desistir, contudo Arenice o convenceu a não parar. E conversando, ela mencionou a exis­tência do Atelier Ingres, a qual sua amiga, médica onde ela trabalhava freqüentava. E propôs que fossem lá.

Hoje não consegue explicar ou definir, porque passiva­mente aceitara fre­qüentar o atelier, não que o ambiente reinante nas aulas noturnas fi­zessem com que achasse inútil sua pre­sença diante do cavalete. A princípio tomado pela timidez junto com o acanhamento, se refugiara num mutismo egocêntrico. Admitia, passados cinco anos tivera pouco progresso, e esse progresso pouco lento não vinha das aulas, ou do atelier, e muito menos do professor que se esforçava em ensiná-lo. Essa len­tidão vinha dele, era sua particularidade que exposta por estar ali se desco­brindo. Era um afeto psí­quico do seu íntimo revelado nas freqüências que tinha ao atelier. Parado em frente à porta indeciso, sentia a inibição crescer prendendo os movimentos. A noção do que fazia ou que acontecia naqueles momentos em frente a porta, se perdia na bruma do esqueci­mento. Parado perguntava angustiado, devo ou não entrar, e num milésimo de se­gundo sem que tomasse uma resolução se via dentro da sala cumprimentando o pessoal. No final da aula saía grato, com ânimo renovado, confiante, para na semana seguinte começar tudo de novo. Possuía a opinião que deveria se empenhar mais, se atrever com mais ousadia, ir além do que se propu­sera, e, no entanto a fraqueza turvava os movimen­tos. A razão surgindo de repente dava-lhe vazão criando um branco, deixando-o em frente da tela sem saber o que fazer. Ao seu lado a amiga pin­tava num método sin­gular todo seu. Gostava do que ela fazia. Era a única que com suas formas criativas ou­sava dentro do marasmo reinante. Formas eróticas, sensuais que surgiam provo­cando um questiona­mento que chegava a chocar. Suas figuras sensuais se evidenciavam na beleza dos corpos nus, na distorção premeditada dos modelos revelando um toque cria­tivo e imaginoso.

A questão era: possuía imaginação criativa? Podia ela proporcionar-lhe con­tinuidade? Melancólico voltou à atenção à tela. Refez um traço torto na figura principal. É arte o que faço? As formas alongadas, disformes, distorcidas arredondadas, como conse­guira criar essas monstruosi­dades? Se gostavam por que recusar, por que não fazer! Cri­ado numa adolescência onde a cultura sendo estreita, o que ressaltava era a sobrevivên­cia isolando a ambição. Tivera a liberdade tolhida pelo medo das conseqüências for­mando uma crosta de acanhamento tímido egocêntrico e egoísta. Tomou conhecimento de possuir liberdade muito tempo depois. Quando a ingênua falsidade do noi­vado procurava esquecer aqueles momentos, rompeu o casulo que o envolvia. Rompimento dolo­roso em conseqüência da despretensão cega da noiva. Ela sem notar o que ocorria deu-lhe a li­berdade que precisava. Possuía criatividade, vendia até razoavelmente bem os quadros. Viver é sentir a si próprio. As pulsões vigorosas fluíam regadas de certa intimidade não como alimento, o que ele achava certo, mas como energia envol­vendo-o camada por camada resti­tuindo o sentir que lhe parecia restituído. Era carre­gado a estar ali dia a dia, no atelier, em frente ao cavalete, criando aquele imenso qua­dro, junto com todos, junto com a amiga, sentindo-se pre­sente como parte do todo do todo, tendo a mansa sensação de ser recompensado. Chegou de­sori­entado, arremes­sado contra o muro de falatórios, contra as grades de risadas e aos sussurros abafados, aos poucos eliminados, deixando-se ouvir abertamente, questionando opiniões no desu­mano sentir alucinado. Trazia nos gestos, nas atitudes, no modo de olhar tímido, a calma, uma espécie de alegria, uma pequena exaltação que se misturava com a apática liber­dade conseguida. Observava a amiga entretida criando formas rosadas de anjinhos desnu­dos. Descobria enfático que nada daria a ela, e por que não aos outros também? por mais que explicasse, a noção do que se passava. Algo se transformava e ninguém percebia. Aproximava-se do ponto exato, talvez a certeza de alcançar o objetivo.

Ela riscava a toalha xadrez da mesa acompanhando a música. Tomava o terceiro café. Não saberia de antemão, ter o desprazer de alimentar um certo arrependimento. Seria egocên­trico. E além do mais estava sendo injusta consigo própria. Não suporto injustiça e de mais a mais, concordara, fora conivente com a situação. E Cláudio? Não quero pensar nele, não agora nesse instante. Não merece. Talvez mais tarde seria oportuno, mas não agora. Não se sabe o que provo­cará ele. Uma reação absurda, grotesca de quem não sabe o que faz. Faltava-lhe competência ordi­nária para enfrentar fatos cruciais. Um idiota é o que ele é. A situação é delicada. Aliás, tudo é delicado. As pessoas não sabem que é preciso pouco para se viver. Em pequenos goles espaçados saboreava o café. Como agiria ele? Eu é que vou saber? Não o conheço. Isso é problema dele. Que se vire da maneira que achar melhor. Só peço que não atrapalhe meu fazer. Sorriu resignada. Confiante sentiu-se levada por movimentos acelerados. Desejou sair dali, ir embora. Queria mesmo? Acendeu o cigarro. Quantos cigarros já fumara? Que importa. Por baixo da pele triguenha os ner­vos se agitavam doendo sua carne. O coração começava alardear a chama selvagem petrificando-a na cadeira. Que fazer? Súbito o olhar descompassado acompanhou o retângulo da porta que se abriu de leve. Sentiu o suave movimento advertindo o coração ao vê-la. Sinto-me amena e nada pa­recerá existir além de mim. Além dela. Respirou cadenciada novamente ao ver os olhos castanhos de quem sabe o quer procurando. Acenou. E instantes mais tarde, Silvana estava sentada a sua frente. Foi então que compreendeu a total imensidão dos movimentos e não se revoltou diante da abrupta ação da amiga. Sorrindo chamou o garçom e sem dar chance à amiga, fez o pedido. Ao ficarem sozinhas fixou sua atenção na voz maviosa da amiga. Ouvia. Era a qualidade animalesca da sua pessoa, da sua maneira de ser. Falar era para os outros. O que a incomodava. Cláudio in­significante como era, não a compreendia. Seu mutismo era revoltante. Ao conhecer Silvana viu a possibilidade de se tornar outra. Mais envolvente com as coisas, com o mundo. Talvez falante ou tornar-se mais ela mesma. Conheciam-se há um ano. A princípio o medo se apossara da frágil ati­tude que exprimira. Nascida e criada na burguesia normal desconhecia o sentir. Arrogante acredi­tava ser possuidora da vida. Ao ficar noiva, em Cláudio tinha a justa sensação de se apoiar num pilar que seria a base da construção. Passados todos esses anos, verificou que o pilar continuava no mesmo lugar. Revoltara-se, não com ele, mas consigo mesma. Um chato, um idiota. Fora burra não ter percebido a mais tempo.

É preciso ter medo... do que? De viver, por exemplo, de sentir as coisas, as pulsões do cosmo, do que se vê principalmente. É. Não ter medo. Não tenho medo. A princípio quando sou­bera a força de não sentir fora grande que ele teve febre intermitente por vários dias. Hoje não. Riu feliz. Ficar com medo do próprio medo! E via. Estava vendo. Já um tempão que estava vendo. Não era visto. Da posição em que se encontrava era impossível ser visto. No entanto, crueldade, quem pode explicar! Desejou ser visto. Queria até. O que não poderia acontecer. Entretidas o mundo só inte­ressava a elas e pouco se importavam o que pudesse estar acontecendo no mundo. Foi o que com­preendeu. Tinham combinado de se encontrarem, e lá estava Isa, não gostava de ser chamada de Isa, Lisandra, e lá estava Lisandra sorrindo no pequeno mundinho. Como demorava se pôs a andar de um lado para o outro, e numa virada para retornar ao ponto de partida, é que vira as duas. Parou. Como acreditar nela depois disso? O pior era ser chamado de idiota, vulgar, sem nunca ter sido. Pelo menos pensava não ser. E suas atitudes? Meramente atitudes que não podiam dar cre­dito. Movidas por impulso de solicitude. Compreendera? Não, não compreendera. Nisso, numa instantânea imagem de colagem, pensou em Arenice. Tumultuado continuava pregado ali. Queria ao mesmo tempo não queria. Docemente como se sentisse o sabor suave de uma fruta, foi sentindo o pequeno sabor de não ser pertinente àquela cena. Duas lágrimas escorreram. A paz mundial é mais im­portante, pensou. Foi o que percebeu, sentiu e no mesmo instante elas olharam para ele e compre­enderam também. A paz mundial é mais importante. Cláudio sorriu não amargurado, mas triste pela tardia descoberta. Enfiou as mãos nos bolsos da calça jeans e começou a andar como se nada houvera acontecido. Elas notaram sua decisão. Lisandra fez menção de querer se levantar, mas foi segurada pela mão de Silvana. Deixou-se cair novamente na cadeira compreendendo o que perce­bera a amiga. Cláudio atravessou a rua pouco se importando com o tráfego.

- Será que encontrarei Arenice em seu apartamento?

pastorelli

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