terça-feira, 26 de outubro de 2010

As amigas.



Perguntava, usando uma expressão costumeira da sua mãe. O que fazia sua constante permanência nesse mundo sabe-se lá de meu Deus? Porque estava ali? Pensava sempre nisso. Não conseguia se es­quivar de perguntar. O pior era não ter resposta, isto é, procurava uma resposta lógica, uma lógica solução que fosse ao mesmo tempo uma resposta.

Intrigava-se por não encontrar nenhuma. Não se importava se a resposta fosse certa ou errada. Queria uma resposta. A mente fla­nava sobre um mundo de interesses que forçava pinçar palavras no sub­consciente. Procurava palavras agradáveis, excitan­tes, forçava-se a prestar atenção nas horríveis novelas. Se enredar na idiotice das tra­mas. Assistia a todos os programas de entrevistas. As ve­zes achava algumas interessantes, outras vezes se martirizava diante dos programas de auditório o domingo inteiro.

E tudo para que? Não pensar, não for­mular a integrante pergunta. Porém todas as tentativas resultavam in­frutíferas, sem êxito voltava a pensar. Não queria. Como se livrar do pensar? Ler um bom livro? Ouvir uma boa música? Horas a fio o rádio esbravejava sonoridade que não prestava atenção.

Faltava-lhe talvez o que a maioria das pessoas desfrutava. Os olhos azuis percor­rem de um móvel a outro reluzente. Cansados se fecharam. O que nada resolvia, pensou aflita. Nin­guém estava afim. Era sua culpa? Não claro. Suas in­tenções eram boas. Só não al­cançavam o objetivo. Seria o modo de agir? Estaria agindo incorreta­mente? Desfavorável talvez. Não seria de­feituoso ...

Virou o rosto. O cheiro de cigarro misturado com cerveja revi­rava seu estômago. Abriu as pernas. Prendeu a respiração. Fechou os pulmões e começou a contar: um...dois...três...quatro...bem lenta­mente... sorvendo o ar para dentro de si... cinco... seis... sete... oito... nove... dez... soltou quase vi­olenta­mente o ar empurrando o mal estar para o canto.

Na cadeira perto da janela, estava as roupas amarfanha­das, amontoadas num desleixo pro­posital. Despojadas do conteúdo que dá vida a elas. Tudo aquilo lhe mostrava a imóvel evidência da sua perma­nência dentro de um mundo doente. Sorriu. Parecia letra de mú­sica.

Num mundo doente sentia ela desconfortável. O peso masculino machu­cava suas costas. Estava can­sada daquela posição submissa a qual, não podia agir, expulsar o mal entumecido entre suas pernas. Aceitara aquilo sim. Havia momentos que desejava, e por mais que se lavasse, se perfu­masse, o cheiro implacá­vel de cerveja, café, cigarro, suor azedo, imundo, nojento, permaneceria muito tempo na pele, nos pe­los, na carne, até nos ossos per­maneceria pelo resto da vida.

Seria, se­ria não, era sua marca, estava ir­remediavelmente marcada. Confes­sava constrangida que as vezes de­sejava o asqueroso universo mascu­lino dentro dela, penetrando-a len­tamente. O que a mortificava era que dificilmente encontraria alguém que não agisse mecanicamente. Eram to­dos despojados de amor, de desejo, de carinho..

Suspirou. Problemas. Sentimentos. Dúvidas. Mesmo a dor não a revoltava mais. Passava a aceitar tudo que lhe cabia aceitar como demonstração de força. Olhou para dentro de si e tomou consci­ência de que o sujeito demorava. Via a bunda branca e peluda refletida no espelho do teto.

Ele pensa o que é? Tinha de atender outros clientes. Não podia ficar de per­nas aberta só para ele! Começou a se irritar com a pele áspera, a língua nojenta em seu corpo. Se fingisse que se excitava? Suavemente come­çou a passar a ponta das unhas nas costas peludas e suadas, então, o viscoso e quente jorro inundou escor­rendo por suas coxas. Estremeceu livre do peso. Pronto desgraçado está satisfeito?

Ah! um dia, sonhava, um dia livre da submissão estaria longe dali. Estaria longe. Ao se levan­tar jurou nunca mais amar. Via ur­gência de sair dessa vida. Por en­quanto aquentava.

Friamente recebeu o dinheiro que o homem lhe dava. Quando a porta se fechou as suas costas, se jogou na cama chei­rando esperma e suor azedo, maldizendo a vida, odiando seu destino. Odi­ando tudo o que rodeava seu mísero mundo. A campainha da porta to­cou.

Foi abrir. Droga! não se pode ficar um minuto sossegada. Jogou o roupão vermelho sobre o corpo. Qual não foi sua surpresa ao vê-la novamente. Meu Deus, não pode ser!? Ela não tinha viajado? Se mu­dado? O que ela queira?

Aproveitando o susto da amiga, empurrou a porta e sem esperar pelo convite entrou e se aco­modou no sofá maltra­tado. O que foi? Não fique aí parada como se visse um fantasma. Vamos conversar. O que? Conversar? O que? Queria conversar!? Que atre­vimento invadindo assim minha privacidade!

Os nervos doíam por baixo da pele. Saudades? Estava com saudades? Como pode ser hipócrita, meu Deus. Dizia sempre: Um dia vou na sua casa, e nunca foi. Agora repentinamente quem ela vê ao abrir a porta? A amiga. Vou na sua casa, se de fato quisesse talvez o relacionamento delas não teria che­gado ao fim como chegou. Mas não. Nunca foi a sua casa, e hoje, depois de....quanto tempo?....três ou quatro anos aparece sem avisar. Quer dizer, resolve aparecer, depois de tudo. Suspirou olhando o telefone que permanecia mudo. Deve ter recados na secretária, pensou aflita. Não ousava verifi­car enquanto a amiga estava ali.

Notou quando voltava do ba­nheiro um copo na mão dela. Desculpe, disse, tomei a liberdade de me servir. Seus lábios sorriram um sorriso leve e entreaberto deixando apa­recer os dentes brancos, sorriso que a fascinava. Parecia a dona do ambiente. Se aproximou no intuito de tirar o copo da mão dela. Mas sem saber porque recuou como se dissesse não ser oportuno.

Não estava com medo dela. Não tinha medo de ninguém. Durante todo o tempo ela fa­lava, falava sem tomar fôlego. Em pé no meio do quarto, parecendo aqueles bonecos ridículos que se dá corda e não para enquanto a corda não termina. Falava em voltar a ser amigas novamente, em compreen­são, em amor, que a amava ainda, traição, amizade... Espere, gritou enfurecida, não fale em amizade. Porque? espantada perguntou ao co­locar o copo vazio em cima da mesinha.

Agora eu é que vou lavar... De­certo se julga uma grande amiga, não é? Esperou. Como ela permanecia calada, continuou. Deixe refrescar sua cabecinha de vento. Quem desesperada pediu a você um mísero empréstimo? Quantia pequena. Du­zentos reais. O que aconteceu? Você recusou, lembra-se, me disse: Oh! querida, e me abraçou, no momento não tenho, mas se quiser te dou um quadro meu para você rifar.

Até po­deria ter aceito, mas eu queria o dinheiro na hora. Iria e realmente fui despejada e você nem se dignou a se preocupar. Sentiu amargura. Sen­tiu ódio. Revolta. Jurou naquele mo­mento nunca mais vê-la.

A partir daquele dia, fez de tudo para se des­vencilhar da amiga. Ia aos encontros sempre acompanhada. Recusava bebidas alcóolicas. Sabia que embria­gada perdia as forças e se entregava aos caprichos dela. Não, chega, já fazia mais de dois anos que não se viam.

E hoje ali, diante dos seus olhos estava ela resmungando hipocri­sias. Abrindo feridas que julgava curadas. O tempo corria no barulho dos carros lá embaixo. Ah! o tempo definitivamente corria em todos os lugares. No olhar penetrante das duas, no silêncio das vozes cansadas. Pensar no tempo dá um terrível frio por dentro.

Que tola, em tudo corria o tempo, até no sorriso do galã pendurado na parede. Tempo ingrato que nunca ofereceu oportunidade alguma, que nunca mostrou o caminho que deveria percorrer. Tempo que não leva essa ingrata daqui, que não percebe o fim de tudo. Quase gritou: Acabou. Vá embora. Gritava todos os poros do seu corpo. Vá embora, gritou por fim com raiva.

E ela devagar sem demonstrar pressa e quase que numa atitude indecisa, pegou a bolsa e saiu batendo a porta. Ufa! pensei que não fosse embora. Mulher desgastante! disse ao mundo. Ao mundo dos desagradáveis afazeres. Tudo é como a gente não quer, resmungou tirando o roupão e nua sentou na cama e acendeu o cigarro e ligou o rádio e deixou o tempo passar pela sua vida que estava existindo sem que realmente vivesse.

pastorelli

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita. Esperamos que volte